Peça em cartaz no Festival de Curitiba venceu o Prêmio Shell de Melhor Dramaturgia com um texto bilíngue que mistura Libras e português, sem hierarquia

Por Sandoval Matheus

Ricardo Boaretto. Foto: Annelize Tozetto.

O ator Ricardo Boaretto teve seu primeiro contato com o teatro ainda muito jovem, aos cinco anos de idade, num grupo escolar. Funcionou mal. Era o único surdo da turma, e se sentia solitário. Fez nova tentativa aos 20 anos, num curso em Juiz de Fora. Ali, enfim, conseguiu criar algo do qual se orgulhou. Posteriormente, em 2013, atuou no espetáculo “Cidades de Deus: casos e conflitos”, só com atores deficientes auditivos, obteve repercussão e chegou a excursionar pela França.

Nada, entretanto, comparável a “Língua”, peça vencedora do Prêmio Shell de Melhor Dramaturgia e que está em cartaz na Mostra Lucia Camargo do Festival de Curitiba. “Fazer parte de ‘Língua’ me fez esquecer muita coisa que já me aconteceu. Não é uma obra sobre acessibilidade. A minha cultura está sendo valorizada ali, o corpo surdo está sendo valorizado”, pontuou na manhã desta sexta-feira, 28, em entrevista coletiva na Sala de Imprensa Ney Latorraca, no Hotel Mabu.

“É muito diferente para o público surdo entrar no teatro e não precisar ficar o tempo todo procurando o tradutor, olhando pro canto e não pra cena. Eles assistem ‘Língua’ e vem conversar comigo, dizendo ‘que coisa linda’, ‘isso é feito pra gente. Eles choram, é de arrepiar. Estão vendo uma coisa que nunca antes aconteceu, algo que é deles.”

Bilíngue, com uma trama em português e também na Língua Brasileira de Sinais (Libras), a obra foi pensada desde o início para impactar da mesma forma tanto os surdos quanto ouvintes. Até mesmo a trilha sonora, composta por Felipe Storino, manteve essa preocupação. Repleta de sons graves, permite que os deficientes auditivos acompanhem suas vibrações.

“Pra gente era muito importante fazer um espetáculo que os dois públicos fruíssem com igual potência”, explicou o ator Filipe Codeço.

Na montagem, Ricardo interpreta um taxista surdo, que cresceu rodeado por pessoas ouvintes, durante uma festa em celebração ao próprio aniversário, oferecida pela mãe. A obra foge da condescendência e se dispõe dar profundidade ao personagem.

“A dramaturgia traz uma figura ambígua, afetuosa e fugidia, uma coisa paradoxal”, contou o diretor Vinícius Arneiro, que assina o texto ao lado de Pedro Emanuel. “A gente tentou fazer jus à complexidade de um ser humano. Como trabalhar com um ator surdo sem tematizar sua condição? É uma pergunta que eu carreguei durante todo o processo, e ainda carrego.”

“É uma dramaturgia que trabalha um mundo que talvez vocês não conheçam”, conjecturou Ricardo. “Porque não precisamos falar apenas sobre deficiência, podemos falar sobre o ser humano. Eu acredito no desenvolvimento, na história das pessoas surdas.”

O trabalho é uma continuação da pesquisa iniciada por Filipe Codeço e Vinícius Arneiro em “Aquilo de que Não se Pode Falar”, de 2021, indicado a quatro Prêmios APTR, da Associação dos Produtores de Teatro. A encenação então contava com a participação do ator surdo Marcelo William da Silva. A experiência anterior, porém, não deixou o caminho muito mais ameno para a nova empreitada.

“A gente que é ouvinte conversa muito falando simultaneamente, atravessando um ao outro, e consegue se comunicar sem se olhar. Na sala de ensaio, tudo isso foi posto em xeque. O tempo da comunicação com um surdo é diferente. Eu aprendi muito com o Ricardo.”

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