Por Annelise Schwarcz
Foto: Miriane Figueira
Fazer um percurso por salas escuras até encontrar uma saída iluminada. O céu sob nossas cabeças em noite de chuva fina. Ouvir jazz e seguir a música. Encontrar Zora Tikar Santos segurando sua bengala com uma mão e fumando com a outra, sentada como majestade em um trono. Ouvi-la dizer: “Vocês querem sentar, né? Vocês vão sentar. Todo mundo tem o direito de sentar. Todo mundo tem o direito a assentar.”
Encontrar um lugar para si colando o corpo à parede. Tentar ocupar apenas o espaço necessário, não se colocar na frente de ninguém; assentar em pé. Sentir cheiro de feijão, observar o panelão de feijoada no centro da roda, em frente à Zora. “Quando você é um bebê, você não sabe se o leite que te amamenta vem por amor ou trabalho; se estão te alimentando ou te servindo”. Se perguntar: “hoje a gente sabe?”
Ouvir a história de um despejo e ser convidada a me projetar nessa história como uma personagem: sou a menina de sete anos acordada pela mãe, andando pela minha casa pela última vez, saindo às pressas sem saber onde estão os talheres de madeira talhados por meu pai, ouvindo o som da porta rangendo e batendo atrás de mim. É preciso memorizar esse som: um prolongado rangido que parece se metamorfosear nos agudos de um trompete encerrado por uma batida seca.
Três pessoas são escolhidas para carregarem a feijoada até o próximo espaço. Uma comunidade começa a ser construída; é preciso nos engajar nessa construção. Caminhar junto.
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O fim é uma outra coisa é uma montagem idealizada e conduzida pela multi-artista septuagenária Zora Tikar Santos, com direção de Grace Passô e Gabriel Cândido. Nessa proposta, somos desafiados a construir uma comunidade temporária a partir dos vetores aparentemente contraditórios de amor-e-serviço, assentamento-e-despejo, futuro-e-passado, sonho-e-realidade. Quando o amor se torna um ato de serviço? Quanto tempo é preciso permanecer até assentar?
Onde o futuro encontra o passado? Quando o sonho é mais real que a realidade? Sabemos que a diferença entre veneno e remédio é a dose, mas sem saber a diferença entre uma oração e um feitiço, repetimos com Zora:
“Em nome da colher de pau, do louro e da cachaça; Enquanto você mexe o tutu, o tutu mexe com você; Chá de guiné à tarde, patoá verde contra a maldade;”
Aos poucos, vamos nos encaminhando para uma experiência sinestésica num torpor entre cheiros (o cheiro de cebola crua sendo picada ao vivo, o cheiro de feijão que nos acompanha desde o início) e sons (o discurso que Abdias do Nascimento proferiu em 1983 na marcha Zumbi Está Vivo; uma lista de plantas que matam ou curam elencadas por Zora, ambos com narração em off). Sob a direção musical de Maurício Badé e performances dos músicos Maicou Yuri, Aworonke Lima, Renato Ihu e Rubi Assumpção, o palco se torna cozinha e a cozinha se torna um espaço encantado, onde dançam caboclos, e panelas podem ser espelhos, mas também podem ser instrumentos. Toda essa profusão de estímulos aguçando os sentidos nos encaminham para outro outro estado de percepção, como em uma gira. Vamos adentrando e tramando, juntos, uma malha de inconscientes conectados pelos sons da cozinha, o ritmo da bateção de colheres, tambores, pratos e panelas. Que memórias esses sons ativam? Ouvir vozes vindo da cozinha, “saudosa maloca” de Adoniran Barbosa tocando ao fundo, casa cheia, dia de festa. Alguém conversa em iorubá e ri. Memórias que eu nem tenho, vidas que eu nunca vivi. Essa lembrança não é minha, como posso me afetar? “Toda história com mulher preta toca, porque foram as mulheres pretas que construíram esse país”, disse Zora após a peça. Lélia Gonzalez explica.
Lélia Gonzalez atuou em diversas frentes, foi: antropóloga, filósofa, historiadora, professora, feminista e fundadora do Movimento Negro Unificado (MNU). É somando todos esses pontos de vista que Gonzalez se lança em sua investigação a respeito do lugar da mulher negra na sociedade brasileira. Recorrendo frequentemente a abordagens psicanalíticas para analisar os fenômenos sociais observados, Lélia propõe que ao contrário do que se poderia imaginar, o inconsciente coletivo brasileiro não seria conformado apenas pela colonização europeia e racista, mas também levaria na memória a marca de africanização deixada pela diáspora forçada do povo negro. Lélia afirma que essa marca foi deixada mãe preta,
Exatamente essa figura para a qual se dá uma colher de chá é quem vai dar a rasteira na raça dominante. […] O que a gente quer dizer é que ela não é esse exemplo extraordinário de amor e dedicação totais como querem os brancos e nem tampouco essa entreguista, essa traidora da raça como querem alguns negros muito apressados em seu julgamento. Ela, simplesmente, é a mãe. […] E quando a gente fala em função materna, a gente tá dizendo que a mãe preta, ao exercê-la, passou todos os valores que lhe diziam respeito prá criança brasileira, como diz Caio Prado Júnior. Essa criança, esse infans, é a dita cultura brasileira, cuja língua é o pretuguês. A função materna diz respeito à internalização de valores, ao ensino da língua materna e a uma série de outras coisas mais que vão fazer parte do imaginário da gente. (GONZALEZ, 2020, p. 87)
Se mãe é quem cuida, amamenta, dá banho, limpa cocô, que põe para dormir, ensina a falar e conta história, então a mãe dessa criança – que é a cultura brasileira –, é a mãe preta. A resistência das amas de leite negras se daria justamente aí, em meio ao seio da família branca colonial, ao inscrever a marca de africanização na língua e na cultura portuguesa debaixo do teto da casa grande para os filhos e filhas dos senhores. Uma resistência que produziu – inconscientemente ou não – efeitos indeléveis através da formulação do pretuguês e do desenvolvimento da cultura afro-brasileira – ou melhor: amefricana, como propõe Lélia Gonzalez. Essas marcas, para além da linguagem, também se encontram na culinária, na música, em manifestações religiosas e artísticas e são encabeçadas, ainda hoje, por mulheres pretas.
Zora é pesquisadora em culinária afro-mineira e busca integrar ao seu cardápio as memórias afetivas que tem de sua infância, compondo pratos com as plantas que cultivava na horta e nas cercas de sua casa, como a ora-pro-nóbis e a cansanção. Devido aos espinhos longos e grossos da ora-pro-nobis, e à urtiga da cansanção, ambas as plantas eram utilizadas para cercar os terrenos. O processo de preparo dessas plantas exige cuidado e esse saber é transmitido de geração em geração, muitas vezes na cozinha, e junto com esses ensinamentos também são transmitidas as histórias de família. Preparar um alimento, portanto, vai além do simples ato de seguir uma receita. Cozinhar se torna um ritual, rito para celebrar encontros, uma alquimia de afetos, temperos e memórias. “Cozinhar junto sempre fez parte da vida negra, da coletividade preta.” Praticar o fazer junto, fazer todos, como quem propõe uma outra forma de ser e estar no mundo, uma outra ética.
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A feijoada que nos acompanha desde o primeiro encontro com Zora, está sobre a mesa no centro do espaço. O prato principal é acompanhado de um prato com banana da terra, tal como Zora prepara todo mês de março para a Congada Treze de Maio em Belo Horizonte. Como quem busca reescrever o passado, Zora se serve, mas não serve a mais ninguém. Ela oferece o alimento, mas não oferece o serviço; se senta, em silêncio, e come. Nós, da plateia, esperamos. Algumas pessoas se autorizam a comer e abrem os caminhos para que as demais pessoas da plateia se sirvam também. Ninguém serve a ninguém além de si mesmo. Enquanto isso, ouvimos um áudio em off, na voz de Zora, tal como uma sacerdotisa, transmitindo suas sabedorias com as ervas:
Capim-cidreira cura Antúrio mata
Agrião cura Copo-de-leite mata
Menta cura Chapéu-de-Napoleão mata
Guacá cura Beladona mata
Erva-doce cura Espirradeira mata
Reside, ao longo de toda a experiência, mas sobretudo no compartilhamento de histórias, comidas e saberes, um convite à partilha de uma sensibilidade que nos coloca em outra relação com a ideia de comunidade, como vislumbre de um outro mundo possível. A peça poderia se encerrar nesse ajeum – palavra de origem iorubá que significa “comer juntos” –, mas o fim é uma outra coisa. A montagem encarna em sua dramaturgia uma espiral de fins e recomeços, assim como despejos e novos assentamentos, que nos mostram a realidade do sonho de Zora, no qual sua mãe lhe diz: “Não conheço nada nosso que tenha chegado ao fim.” Quantas vezes o mundo já não acabou? Quantos mundos não surgiram desde então? É na aposta na capacidade de se reinventar, se regenerar – e até mesmo de se vingar, tal como semente que insiste em brotar em condições adversas – que a montagem encontra sua força.
O espetáculo “O fim é uma outra coisa” foi apresentado nos dias 04 e 05 de abril de 2025 no Festival de Curitiba.
Ficha Técnica:
Idealização e Atuação: Zora Tikar Santos / Direção Geral: Grace Passô e Gabriel Cândido / Direção Musical: Maurício Badé / Direção de Produção: Lucas Ferrazza / Dramaturgia: Dione Carlos e Zora Tikar Santos / Musicistas/Músicos: Maicou Yuri, Aworonke Lima, Renato Ihu e Rubi Assumpção / Obra Cenográfica: Lúcio Ventania / Confecção da Obra Cenográfica: Cerbambu / Figurino: Zora Tikar Santos / Desenho de Luz: Danielle Meireles / Operação de Luz: Juliana Jesus / Desenho e Operação de Som: André Papi / Contrarregras: Diego Roberto e Amanda de Jesus / Coordenação de Produção e Produção de Campo: Ketully Oliveira / Produção executiva: Casa Cume Produções.