Por Annelise Schwarcz
Foto: Maringas Maciel
Eu te falo na tua língua, e é na minha linguagem que eu te escuto.
Édouard Glissant
Essa prática de amizade dada em tradução! Estamos nisso juntos. Nossa(s) língua(s) em suas bocas, nossas palavras em suas mãos.
Fred Moten e Stefano Harney
Como se diz “eu escrevi um poema” em LIBRAS? Como se fala “paixão”? Você pode traduzir isso para mim? Como se escreve um texto na língua de sinais? Eu queria manter esse diálogo bilíngue, mas não conheço os meios. Como se relacionar com a diferença enquanto diferença? Sem tentar homogeneizar, aparar as pontas ou criar meio-termos que não contemplam nenhuma das partes. Como manter a diferença ali, no seio da construção de uma sensibilidade comum, sem que ela precise ser destruída para que essa partilha possa existir? São esses os desafios que Língua abraça e executa com precisão.
Com direção de Vinicius Arneiro, dramaturgia desse em parceria com Pedro Emanuel e interlocução de Catherine Moreira, Língua é um espetáculo bicultural e bilíngue com dramaturgia voltada para o público surdo e ouvinte. Não se trata de uma tradução em LIBRAS de um texto em português. A montagem é, em sua essência, pensada para ambas as línguas. Em Língua, o intérprete de LIBRAS, Jhonatas Narciso, não está em um canto do palco: aqui, tanto ele quanto a tela com legendas em português são personagens em cena. Não é como se ter a/o intérprete de LIBRAS na lateral do palco fosse uma coisa ruim, mas devido ao fato de as línguas de sinais serem fundamentalmente visuais, distribuir o olhar entre a cena e o/a intérprete desafia a fruição do espetáculo. Nesse cenário, é muito comum encontrar espetáculos com tradução, mas que ainda assim não atraem o público surdo.
Em Língua, assistimos ao aniversário de Matias (Ricardo Boaretto), um taxista surdo que vive com a sua mãe ouvinte (Erika Rettl), e que está prestes a ser recebido em casa por uma festa surpresa que ela está organizando com outros amigos ouvintes de Matias. A mãe, superprotetora, tenta blindar seu filho contra toda hostilidade do mundo ouvinte, evitando qualquer situação que possa fazer com que o filho se sinta à margem da sociedade. Portanto, em sua casa todos falam em LIBRAS e não se ouve música. A chegada dos amigos desafia a ordem do lar e escancara a falta de controle dessa mãe sobre Matias, a casa e o mundo ouvinte. Mundo esse que, por sua vez, não assusta Matias. É que Matias e seu grupo de amigos aprenderam a construir uma comunidade, com suas singularidades e diferenças, e a habitar os interstícios da linguagem. Lendo Jacques Rancière, a crítica de arte Marisa Flórido Cesar explica, em seu texto Como se existisse a humanidade1, a relação entre comunidade e diferença da seguinte forma:
Uma comunidade política é, para Rancière, sempre reconfiguração, deslocamento no interior de um comum para colocar ali o que não era comum. É diferença reivindicada no interior de uma “figura de comunidade”,[…] desfazendo-a, porque tal experiência nova e incomum não poderia ser incluída nas partilhas existentes sem estilhaçar os códigos de inclusão e os modos de visibilidade que as regulavam. O comum não aparece nas representações substanciais, mas nas fraturas, nas aberturas de novos mundos que surgem de desregramentos e das redistribuições […] dos corpos que reivindicam ocupar outros lugares e ritmos diferentes daqueles que lhes eram demarcados. (CESAR, 2007, p. 21)
Existem experiências estéticas que nos atravessam justamente pela abertura de mundos que estas proporcionam ao justapor elementos que, a princípio, nos pareciam conflitantes. Destaco uma das cenas: Julieta (Luize Mendes Dias) coloca a música Volta por cima na versão de Maria Bethânia. A mãe insiste para que não toquem música, mas Julieta começa a traduzir a letra em LIBRAS e a criar passos de dança a partir dos sinais, com intensidade e precisão de movimentos, como quem realmente “reconhece a queda e não desanima, levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima.” Tom (Jhonatas Narciso) se junta à Julieta na coreografia e é logo seguido por Matias que, como sabemos, não está ouvindo a música, mas se relaciona com esse momento, primeiramente, repetindo os sinais coreografados de Julieta, e depois, com a saída dos amigos de cena, sentindo a vibração da caixa de som próxima ao peito, como quem quer se demorar um pouco mais na reverberação daquela cena.
Através da vibração das ondas sonoras graves, que nos atravessam o corpo, pessoas surdas conseguem se conectar à música. Isso aparece mais explicitamente na cena descrita no parágrafo anterior, mas ao longo de toda a peça é possível sentir as vibrações de baixa frequência produzidas pelos subwoofers que compõem a trilha sonora do espetáculo, idealizada por Felipe Storino. A dimensão bicultural da peça vai além do conteúdo e é sublinhada em cada detalhe possível da montagem: desde a dimensão visual à dimensão tátil; da dimensão estética à dimensão ética e política.
A presença dos diferentes corpos em cena vai além do discurso identitário em torno da representação ao nos oferecer mais do que personagens achatados que reinvindicam um suposto “ser negro”, “ser surdo” ou um “ser mulher” de forma unidimensional. A poética de Língua aposta na apresentação de tipos humanos complexos, com suas virtudes e contradições, para além das minorias políticas que esses corpos podem vir a compor. E se é possível dizer que há um discurso de conscientização acerca das singularidades da cultura surda, não é de forma panfletária ou por meio de uma reivindicação por inclusão que esse discurso nos chega, mas através da introdução orgânica dessas diferenças na relação entre as personagens, destacando elementos inerentes às diferentes subjetividades e línguas de forma sensível.
Para criar fraturas no senso comum, é preciso redistribuir alguns desconfortos. Para nós ouvintes, ir ao teatro e compreender o que está sendo dito é a experiência mais banal, mas para pessoas surdas isso não está garantido. A montagem busca nos deslocar desse lugar de privilégio da linguagem e nos coloca diante de cenas nas quais só há interpretação em LIBRAS e nós, ouvintes que não falamos em LIBRAS, ficamos com o exercício de perseguir o significado daqueles sinais nos abrindo para uma experiência de parcial compreensão dos acontecimentos, mas que de forma alguma se mostra insuficiente. A peça, no entanto, não faz isso com rancor ou ressentimento. Pelo contrário, há muita ternura permeando diversas cenas.
O desconforto momentâneo não tem como objetivo encerrar o diálogo, pelo contrário. Existe uma certa incomunicabilidade inerente a toda e qualquer relação, mesmo entre falantes da mesma língua. Por vezes, deliramos dominar certos códigos e seus significados, e nesse delírio acreditamos ser possível transmitir uma mensagem clara e cristalina ao outro, que irá compreendê-la sem ruídos. No entanto, tanto o esforço de nos traduzir em palavras, imagens ou sinais, quanto a compreensão do outro acerca do que transmitimos, sempre se apresenta como um abismo entre aquilo que pretendemos comunicar e o que realmente alcança o outro. Isso não nos impede de seguir engajados no exercício de cultivar uma poética da relação. É o que nos mostra a cena em que Matias conta a história por trás do chaveiro do seu carro para Félix (Filipe Codeço), seu amigo ouvinte que não compreende LIBRAS. Nós, ouvintes, acompanhamos a cena, assim como Félix, sem saber exatamente se estamos assistindo a uma história sobre um atropelamento, uma fuga, uma perseguição ou uma batida. Na verdade, a tônica da relação entre os dois é permeada por essas incompreensões e incertezas. Mas não o compreender totalmente não impede Félix de se apaixonar por Matias. É na não compreensão total, no fato de haver sempre um resto que se mantém opaco e misterioso – resistente a se tornar transparente para si e para o outro – que reside a possibilidade de se continuar uma conversa e sustentar o encanto pelas surpresas que hão de vir desse encontro de mundos.
1 CESAR, Marisa Flórido. Como se existisse a humanidade. Arte & Ensaio (UFRJ), Rio de Janeiro, v. 1, p. 16-25, 2007.
O espetáculo Língua foi apresentado nos dias 28 e 29 de março de 2025 no Festival de Curitiba.
Ficha técnica:
Direção: Vinicius Arneiro / Dramaturgia: Pedro Emanuel e Vinicius Arneiro / Interlocução Dramatúrgica: Catharine Moreira / Direção de Produção: Juracy de Oliveira / Elenco: Erika Rettl, Filipe Codeço, Jhonatas Narciso, Luize Mendes Dias e Ricardo Boaretto. / Intérprete LIBRAS/Português: Lorraine Mayer / Produção Executiva: Thais do Ó e Natally do Ó – Âmbar Produções / Assistência de Direção: Dominique Arantes / Figurino: Julia Vicente / Cenário: Julia Deccache / Direção Musical: Felipe Storino / Iluminação: Daniela Sanchez / Arte Gráfica: Pedro Colombo / Assessoria de Imprensa: Rachel Almeida (Racca Comunicação) / Gestão de Mídias Sociais: Caroline Frizeiro / Fotografia: Renato Mangolin / Idealização: Filipe Codeço e Vinicius Arneiro