Por Annelise Schwarcz
Mas onde estamos quando nos é permitida a liberdade não simulada? E as brechas? […]
E, então, pensamos em práticas de recusa, tão antigas quanto podemos imaginar. […]
A recusa não é a oposição binária, o simples NÃO!. Recusar é fazer outramente.
Foto: Lina Sumizono
Rei Lear é uma tragédia, escrita por William Shakespeare, sobre um monarca da Bretanha que decide abdicar do trono e dividir seu reino entre suas três filhas: Goneril, Regan e Cordélia. Para decidir como será feita a divisão, o rei pede para que cada uma declare seu amor por ele. Quanto melhor o discurso, mais generosa será a fatia do território destinado à vencedora. Goneril e Regan fazem declarações falsas e exageradas de amor para adular Lear e obter poder. Cordélia, a mais jovem e sincera, se contenta em declarar que o ama conforme seu dever de filha. Lear, ofendido, a deserda e a exila do reino. Cordélia se casa com o rei da França e parte. Lear divide o reino entre Goneril e Regan, mas logo elas o lançam em uma espiral de loucura, ao tratá-lo com ingratidão e desdém.
Há uma trama paralela envolvendo Gloucester, nobre próximo a Lear e pai de dois filhos: Edmund, seu filho bastardo, e Edgar, seu filho legítimo. Gloucester, assim como Lear, também é vítima da traição de seu filho. Edmund redige uma carta tramando contra o reinado do pai e atribui a autoria da carta a seu irmão. Gloucester, sem hesitar, compra a versão do bastardo e, como consequência, Edgar se vê obrigado a deixar o castelo e ir viver como Tom, um morador de rua. Edmund se une à Goneril e Regan, e entrega seu pai às suas mais novas aliadas, que o deixam cego após descobrirem o plano de Gloucester de se unir a Cordélia e a Lear numa missão contra elas. Lear, em um estado de demência progressiva, vagueia pelas ruas e desafia tempestades. Cordélia retorna à Bretanha com o exército de seu marido para resgatar o pai e restituir a ordem, mas eles perdem a batalha para o exército comandado pelos maridos de suas irmãs. Cordélia é capturada e executada, a ganância de Goneril e Regan se volta uma contra a outra e ambas acabam mortas. Os irmãos Edmund e Edgar também travam uma batalha, na qual Edgar sai vitorioso, sendo um dos poucos sobreviventes junto a outros membros remanescentes da nobreza.
Lendo esse enredo, é difícil imaginar uma montagem da peça que não fosse densa e dramática, tal como um episódio de Game of Thrones, e que não excedesse as duas confortáveis horas de duração – com todos seus personagens e reviravoltas da trama sendo contemplados. Mas a mais recente montagem de Rei Lear, realizada pela Cia. Extemporânea, consegue realizar tal façanha e nos entrega um espetáculo que consegue equilibrar doses de tragicidade e comicidade, de deboche e de sobriedade, às vezes dentro da mesma cena. Como, por exemplo, na cena em que Edgar – já disfarçado de Tom –, guia seu pai cego, sem que este saiba que está sendo conduzido pelo próprio filho. “Desgraçado o tempo em que os loucos guiam os cegos” – diz Gloucester, interpretado por DaCota Monteiro, diante da situação e, mesmo em meio aos risos que o portunhol de Edgar-Tom interpretado por Mercedez Vulcão nos causa, ficamos com a provocação enunciada pela personagem.
Com um elenco formado por nove drag queens (Alexia Twister, Antonia Pethit, DaCota Monteiro, Ginger Moon, Lilith Prexeva, Maldita Hammer, Mercedez Vulcão, Thelores, Xaniqua Laquisha), a peça se nutre do universo drag: sua performatividade, as roupas deslumbrantes, maquiagens expressivas, referências musicais como os clássicos Hung up de Madonna e It’s raining men de The Weather Girls, o humor rápido e ácido – a língua afiada – e até mesmo os shades, comentários sarcásticos dirigidos indiretamente a alguém presente, são inseridos na adaptação do texto realizada por João Mostazo.
Na adaptação, assistimos Rei Lear (Alexia Twister) sentado em um trono com um mapa do Brasil, repartido em três partes, pendurado atrás do monarca. Em suas diagonais, sentam-se suas filhas e os demais membros da nobreza que frequentam sua casa. Os bancos e elementos cênicos que compõem o cenário são removidos e trazidos para o palco por contrarregras que integram a cena como serventes da realeza e chegam a interagir com as atrizes. Sob a direção de Ines Bushatsky e assistência de direção de João Mostazo, a montagem demostra sua inteligência dramatúrgica através das operações de corte e costura da trama, como quando Antonia Pethit – interpretando Regan – anuncia na segunda cena que por falta de orçamento cortaram os maridos das irmãs da peça, marcando uma opção da direção.
Levando em consideração o período elisabetano no qual a tragédia de Shakespeare se situa, eu não ficaria surpresa se os figurinos remetessem à icônica apresentação de Vogue que Madonna performou no MTV Video Music Awards em 1990. No entanto, os figurinos de Salomé Abdala junto ao visagismo realizado por Malonna e Polly, são mais criativos e autênticos do que isso. Sem perder a assinatura específica de cada drag, cada figurino leva em consideração traços da personalidade daquele personagem ou o papel que esse desempenha na trama, no lugar da homogeneidade a que assistimos em Vogue. Como, por exemplo, a cobra no penteado de Edmund, as vestes e tranças de monarca de Rei Lear ou a maquiagem vermelha e sem cílios postiços de Gloucester, que marcam o momento de sua cegueira.
Madonna no MTV VMAs em 1990
Elenco de Rei Lear – Foto: Mariana Chama
A montagem escapa a certos lugares comuns da performance drag, como por exemplo a bateção de cabelo e as batalhas. Para mim, que fui familiarizada com a cena a partir do contato com o reality show Rupaul’s drag race e do filme Paris is burning – no qual é retratada a cultura ballroom, onde grupos chamados “Houses” (ou “Casas”) competem em diversas categorias –, a competição e as batalhas me pareciam elementos intrínsecos à socialização e apresentação das drags. Se assistimos a uma performance de lip sync – como a de Lear, o bobo e Kent dublando Its raining men! –, nessa apresentação não se trata de uma competição “pela sua vida” ou por uma premiação, como em Rupaul’s drag race. Tampouco a batalha entre os exércitos das irmãs é encenada – o que nesse caso, devo admitir, seria algo que eu adoraria ver ser incorporado à cena. Só pelo gostinho de ver qual coreografia e música cada uma montaria para essa batalha. Deixando de lado minhas expectativas, o que ressalta é uma operação dramatúrgica que assume o fracasso e a recusa – e não a competição ou a vitória – como o jogo de cena.
“Recusa” e “fracasso” são dois temas que, de acordo o pesquisador em gênero e sexualidade Jack Halberstam, se relacionam diretamente com uma forma específica de resistência da comunidade queer. Se por sucesso se compreende ser bem adaptado ao estilo de vida neoliberal e heterocisnormativo, então ser queer é fracassar. Como Halberstam afirma em seu livro A arte queer do fracasso, ser queer é, muitas vezes, um ato de recusa de normas, expectativas, estruturas e identidades fixas. Mas é justamente essa recusa que vai nos permitir criar outras possibilidades: outro conceito de sucesso, de família, de casa, de relações e de identidades. A recusa, como afirmam Fred Moten e Stefano Harney, é o que nos permite fazer outramente.
Nesse sentido, a recusa de Cordélia em competir com as irmãs numa batalha na qual vence a que for mais falsa, ganha uma dimensão ética e política para além daquele momento – e é incorporada esteticamente à montagem da peça. É justamente seu gesto que irá escancarar um mundo de mentiras e vaidades que sustenta e é sustentado pelas pessoas da realeza. Ao se recusar a bajular seu pai e feri-lo diretamente em seu ego, Cordélia põe em marcha a desintegração do reino. Somente após fracassar enquanto pai, enquanto responsável pela unidade do reino e chegar ao fundo do poço, é que Lear pode encontrar aliados de confiança com quem poderia conspirar uma aliança. Despojado de sua vaidade, Edgar/Tom se une a Lear, a seu pai Gloucester – igualmente fracassado –, e à Cordélia – filha exilada e humilhada por Lear –, para se unirem em uma frente contra Goneril, Regan e Edmund, apenas para fracassarem juntos mais uma vez. A diferença é que, desta vez, já não é mais possível dizer que houve ganhadores levando vantagem após a disputa não encenada.
Para além da estética queer, a peça assume, portanto, uma ética queer que perpassa diversos aspectos. A própria performatividade de gênero é torcida de tantas formas que as atuações simplesmente explodem com qualquer marcação de gênero dos próprios personagens. Lear, Gloucester, Kent são só nomes que não designam nenhum contorno de gênero específico; assim como ser pai, ser rei ou irmão são apenas funções a serem executadas. Por trás das drags, temos homens cis, mulheres cis e trans performando suas personas, interpretando papéis supostamente atribuídos a homens a partir dessas figuras supostamente femininas, borrando as fronteiras entre feminino e masculino e criando um espaço de indistinção, um limiar onde dinâmicas de gênero são suspensas, tornando possível uma outra roupagem para velhas questões acerca de loucura e sanidade, justiça e vingança, sucesso e fracasso.
Apesar de o humor permear diversos momentos, as drags em cena não estão ali para fazer uma sátira da peça. Pelo contrário. A montagem da Cia. Extemporânea nos presenteia com um trabalho meticuloso, uma interação de rara simbiose entre o elenco, e com a atuação vencedora do Prêmio Shell de melhor ator de Alexia Twister – primeira drag a vencer na categoria. Os debates em torno do tema da loucura, da vaidade, do poder e, sobretudo, no que tange ao etarismo – tema recorrente na Mostra Lúcia Camargo deste ano, no Festival de Curitiba – não deixam de ser abordados com profundidade, apesar dos alívios cômicos. Arrisco dizer que é justamente devido à dimensão cômica, hiperbólica e intensa das drag queens – e não apesar dela –, que esses temas, já presentes na obra de Shakespeare, ganham o devido espaço e importância na montagem.
O espetáculo Rei Lear foi apresentado nos dias 31 de março e 1 abril de 2025 no Festival de Curitiba.
Direção: Ines Bushatsky / Elenco: Alexia Twister, Antonia Pethit, DaCota Monteiro, Ginger Moon, Lilith Prexeva, Maldita Hammer, Mercedez Vulcão, Thelores, Xaniqua Laquisha / Texto adaptado e assistência de direção: João Mostazo / Cenário: Fernando Passetti / Luz: Aline Santini/ Figurino: Salomé Abdala / Visagismo: Malonna e Polly / Assistente de perucaria: Yuri Tedesco/ Trilha sonora e operação de som: Gabriel Edé / Preparação vocal: Felipe Venâncio / Operação de luz: Pajeu Oliveira / Microfonista: Viviane Barbosa / Contrarregragem: Felipe Venâncio, Matias Ivan Arce / Costureiras: Caio Katchborian, Nana Simões, Salomé Abdala / Sapatos: Porto Free Calçados / Bordados: Alesha Bruke, Salomé Abdala / Fotos: Mariana Chama, Suka, Tetembua Dandara / Arte gráfica: Lidia Ganhito / Redes sociais: Mariana Marinho / Assistente de Produção: Gabriela Ramos / Direção de Produção: Tetembua Dandara / Assessoria de Imprensa: Pombo Correio