Crítica de A Última Ceia

Por Pollyanna Diniz

Foto: Maringas Maciel

Em Véspera, livro de Carla Madeira, um pai dá aos filhos gêmeos os nomes de Caim e Abel para se vingar da esposa religiosa que o rejeitava. Anos mais tarde, um dos gêmeos ia mal no colégio, seria reprovado. A mãe, Dona Custódia, temia que houvesse uma quebra na relação entre os irmãos. Resolve então interceder por Abel junto a um dos diretores da escola, padre Tadeu. O religioso pede que a mulher deixe que ele lhe conte a história bíblica de Caim e Abel, ao que ela retruca dizendo que a conhece.

  • Tenho certeza que sim, mas, para nossa sorte, uma história sempre pode ser

Padre Tadeu narra a história de Caim e Abel pontuando que Deus provocou a ira de Caim quando fez diferença entre as ofertas dos irmãos, e que teria usado o mais velho para nos ensinar sobre a raiva e o quanto ela nos potencializa ao mal, nos desajusta. Ao mesmo tempo, impediu que Caim fosse morto, mesmo depois de ter assassinado Abel. Não seria aquele episódio que instauraria o olho por olho, dente por dente.

Há semelhanças entre o que tenta a narrativa de Carla Madeira, aqui personificada por padre Tadeu, e o grupo MEXA, criado em 2015, em São Paulo, em sua peça A Última Ceia, apresentada no 33º Festival de Curitiba. Aproximando-se e apropriando-se de histórias bíblicas incorporadas ao nosso repertório comum cristão ocidental de determinado modo, o livro e a peça nos oferecem outras miradas. Perspectivas, senão de rompimento ou de fuga, de respiro. Nessa operação, não há necessariamente questionamentos ou contradições escancaradas à “verdade bíblica das escrituras sagradas”, mas possibilidades de relação.

  • Isso não está escrito, dona Custódia. É uma interpretação. E, como toda interpretação, carrega um pouco do desejo de quem a faz. Não será diferente comigo, diz padre Tadeu quando a mãe dos gêmeos questiona sua perspectiva bíblica.

Há muito de desejo no espetáculo do MEXA, que tem no elenco majoritariamente atrizes trans e travestis. Estão em cena Aivan, Alê Tradução, Dourado, Patrícia Borges, Suzy Muniz e Tatiane Arcanjo. A direção e a dramaturgia são assinadas por João Turchi. Alguns dos corpos no palco se anunciam antes de qualquer fala pronunciada. Corpos considerados abjetos que desejam perscrutar a Santa Ceia a partir do quadro A Última Ceia, de Leonardo Da Vinci (1452-1519), pintado no refeitório de um convento dominicano, ao lado da Igreja de Santa Maria delle Grazie, em Milão, na Itália, entre os anos de 1494 e 1498.

A peça do MEXA tem uma trajetória internacional: estreou em 2024 no Kunstenfestivaldesart, em Bruxelas, na Bélgica, foi apresentada no Kaserne Theatre, em Basel, na Suíça, no Festival Theaterformen, em Braunschweig, e no Sophiensaele, espaço em Berlim, ambas as cidades na Alemanha. No Brasil, fez temporada na Casa do Povo, em São Paulo, onde os artistas do MEXA são residentes, participou da MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo e agora do Festival de Curitiba.

A obra de Da Vinci captura o momento em que Jesus diz aos discípulos que seria traído. Era a última refeição com os seus amigos antes de ser crucificado. O que podem nos dizer corpos travestis, corpos de pretas e pretos, sobre traição, morte, ressurreição, comunhão e partilha? Quais as simetrias entre “um homem crucificado, mulheres enforcadas como bruxas, negros arrastados por carros de polícia”? O que significa a expectativa do fim para uma travesti no Brasil? Precisamos dizer que o Brasil é o país que mais mata travestis e transsexuais no mundo? Essa peça não é sobre morte, ou não apenas, mas sobre ressurreição, compartilhamento, fartura, festa. Alguma bondade nos servirá a todos, melhor defendê-la, escreve Carla Madeira.

Se a injustiça da exclusão, da fome e da iminência da morte geram raiva, aquela que Deus provocou em Caim, e mais violência – ou histórias isoladas de superação –, as atrizes decidem que a peça não vai seguir por aí. O desejo passa por assumir o protagonismo das suas narrativas, brindar ao fato de terem chegado até ali, e decidir quais histórias e como elas serão contadas. Como todas as histórias dependem da perspectiva de quem as conta, as atrizes se questionam: como gostaríamos de ser lembradas? Quantas vezes uma imagem precisa ser repetida para que a gente se lembre dela?

Nem crianças – ou, neste caso, nem travestis – lançarão granadas na imagem da face de Cristo, como acontecia em Sobre o Conceito do Rosto do Filho de Deus, do diretor italiano Romeo Castelucci, homem branco europeu que provocou polêmica com sua peça já apresentada no Brasil. Se há uma expectativa no senso comum de que artistas – e especificamente artistas com corpos ditos abjetos – provoquem escândalo criticando o cristianismo em suas obras, o espetáculo do Mexa não atende a esse anseio. O máximo que vai aparecer é a falta de fé – uma das atrizes assume que não acredita em Deus e outra imediatamente revida: as duas pegariam um voo juntas em alguns dias, isso lá é coisa que se diga? Risadas na plateia. Ou a citação no texto de outras religiões, especialmente as de matrizes africanas: “Na minha releitura, Jesus é Exu”.

De modo geral, poderíamos dizer, inclusive, que A Última Ceia é um espetáculo bastante cristão, dependendo do que consideramos cristão. Como esse categorização pode variar bastante num país conservador e direitista como o Brasil, o exemplo de cristianismo que trago aqui, quando me refiro à peça, é o do padre Júlio Lancellotti, um cristão que não se dobra ao preconceito, combate a transfobia, prega a convivência, a partilha. Que olha o outro nos olhos, enxerga a dor da fome e da exclusão, e acredita na potência que pode surgir no compartilhamento do pão. Por seus posicionamentos e sua prática, sofre as consequências.

A subversão da peça, se é que podemos chamar assim, está no campo da instauração de uma convivência com corpos dissidentes na sala de espetáculos. Corpos que não estamos acostumados a ver no teatro, mesmo que esse seja o espaço íntimo de imaginação de novas realidades. Em determinado momento, elas, as artistas, as donas do palco, as detentoras do poder naquela situação, convidam parte do público para jantar com o elenco. E há, aqui, um fato: não haverá lugar para todos à mesa. Talvez pelo desejo de que aquela cena seja de fato representação, e que haja essa divisão clara entre os que participam e os que estão no lugar de espectadores comuns, assistindo ao que acontece com alguma distância; ou pela reprodução de um cristianismo da vida cotidiana que não comporta todos. Não há comida, vagas nos centros de acolhida, emprego, dignidade para todos.

No jantar que transforma o palco em mesa, servido no meio do espetáculo, temos frango, farofa, batatas. Brinde com vinho. Alguém da plateia, rápido o suficiente para garantir o lugar à mesa, comemora: “essa é a melhor peça do festival”. Rimos, mesmo sabendo que não se trata disso. É só parar por um instante e se perguntar de modo quase rasteiro: quantas pessoas ali naquele teatro convivem com travestis em seus cotidianos? Quantas dividiram, em condição de igualdade, pelo menos uma vez na vida, uma mesa com uma travesti? O texto da peça nos lembra que essa é a única vez em que essas pessoas vão jantar juntas. Logo depois daquela sessão, esse arranjo vai se desfazer. Será o último? Só melhorando as gentes, melhoramos os seus deuses, me permito uma versão de uma das epígrafes de Carla Madeira.

Nas confluências com o quadro A Última Ceia e a história cristã, a dramaturgia propõe analogias e atravessamentos que vão se desenhando. Assim como aquela seria a última refeição que Jesus faria com seus discípulos, seus amigos, a peça estabelece uma dúvida sobre o fim do próprio grupo MEXA. “Toda peça pode ser a última, mas alguma coisa muda quando a gente sabe que é uma despedida”. Essa suposição do fim do grupo, e o que isso significaria, vai percorrer toda a dramaturgia. Alguém diz que poderia ser um novo começo. Outra pessoa atesta que não voltará ao grupo depois da peça. O que significa trabalhar com arte, especificamente com teatro, para uma travesti?

Há ainda um questionamento sobre ficção e realidade e sobre a própria representação. Ivana (Aivan), de vestido vermelho, uma figura imponente, dá o texto: teatro é sobre repetição. Ao final da temporada, de tanto repetir o espetáculo, elas todas estarão cansadas de suas personagens, e acharão que não existe mais nenhuma verdade em suas representações. O que é verdade numa representação? O que é verdade numa história contada repetidas e repetidas vezes como a do sacrifício de Jesus? Quais verdades a tela de Da Vinci consegue capturar?

Nessa tentativa de estabelecer relações dramatúrgicas com os disparadores da obra, o quadro bíblico e as narrativas que se desprendem dele, as que melhores se estruturam, dando maior consistência ao texto, dizem respeito ao campo documental, às histórias que supostamente vazam da ficção. O MEXA se formou no âmbito de alguns centros de acolhida da região do Bom Retiro, especialmente da Casa Florescer, primeiro centro de acolhida de São Paulo destinado a mulheres trans em situação de rua. Num vídeo, uma das atrizes, Suzy Muniz, diz que veio do Maranhão para São Paulo de ônibus. Durante a viagem, comeu apenas maçãs, porque era mais barato. Vemos então o refeitório do centro de acolhida que ela frequentou na cidade – e está lá, a reprodução do quadro de Da Vinci, mas com muito mais fartura de comida do que na pintura original. É possível representar a fome?, questiona a dramaturgia. Há muito mais fome do que comida naquela tentativa de representação imagética. O que se quebra depois da fome?

Um paraíso não é suficiente contra determinados infernos, volto a Carla Madeira.

As artistas compartilham suas histórias com a imagem de A Última Ceia, uma das mais reproduzidas da história da arte mundial. O quadro na cozinha da casa da avó; o pai bêbado trazendo o quadro e a mãe que acaba por destruí-lo porque alguém diz que a imagem tinha demônios; o quadro que sobrevive a intempéries, como uma enchente. O processo da peça também é incorporado à encenação, um registro documental em vídeo questiona: quantas vão sucumbir? Ao final dos ensaios, quem vai fazer a peça? Os conflitos inerentes a uma criação artística são explicitados. Assim como na vida, a convivência durante os ensaios pode ser desafiadora. As relações de poder e de autoridade entram na discussão: “Eu não gosto de dar palpites, gosto de dar ordens”.

Na esteira do processo, uma demanda trazida à encenação: quem faria Judas? Se todas ali já foram traídas, como atesta a dramaturgia, por que querem ser Judas? O que, de humanidade, escorre da figura de Judas? Em teoria, o público escolhe quem vai interpretar Judas depois que cada uma diz por que deveria fazer o papel. Duvido outra pessoa ganhar depois que Veronika Verão promete amor – uma noite de amor. Se o papel de Judas está definido, e o de Jesus? Esse lugar, o daquele que reparte o corpo, o pão, o salvador, o que é sacrificado, morre, mas ressuscita, está mesmo vazio no palco? Todas poderiam ser Jesus. Mas sabendo que o que queremos, precisamos ressaltar, é vida e não morte, festa e alegria, e não fome. Passou da hora de Jesus humilhar o satanás, como na brincadeira com a música The Rhythm of the Night.

O espetáculo A Última Ceia foi apresentado nos dias 31 de março e 1 de abril de 2025 no Festival de Curitiba.

Ficha técnica:

Criação: MEXA

Direção e dramaturgia: João Turchi

Performance e co-criação: Aivan, Alê Tradução, Dourado, Patrícia Borges, Suzy Muniz, Tatiane Arcanjo e Veronika Verão

Vídeo performer, criação de vídeo e direção técnica: Laysa Elias

Assistência de direção, de movimento e de performance: Lucas Heymanns

Trilha sonora, sound design e performance: Podeserdesligado

Luz e performance: Iara Izidoro

Produção executiva: Francesca Tedeschi Produção e direção de arte: Lu Mugayar Figurino: Anuro Anuro e Cacau Francisco Cenário: Vão

Direção vocal: Dourado

Integraram parte do processo criativo: Anita Silvia, Daniela Pinheiro e Gustavo Colombini

Colaboração dramatúrgica: Olivia Ardui

Pesquisa e consultoria artística: Guilherme Giufrida

Produção: MEXA

Coprodução: Kunstenfestivaldesarts, Casa do Povo, Kampnagel – Internationales Zentrum für Schönere Künste

Agradecimentos especiais: Esponja, Ana Druwe, Benjamin Seroussi, Marcela Amaral e Felipe Martinez

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