Por Francisco Mallmann
Foto: Annelize Tozetto
E se um grupo de pessoas idosas, de diferentes bairros, histórias e experiências, percorresse a cidade e fizesse disso uma peça de teatro? A Velocidade da Luz, projeto do diretor argentino Marco Canale, transforma o espaço público em palco e a experiência do tempo em dramaturgia partilhada.
Realizado em diversas cidades do mundo, o projeto chegou a Curitiba com o mesmo convite: ouvir, acolher e criar a partir das histórias de quem já viveu décadas de existência neste território. Um gesto est-ético que desacelera a pressa cotidiana para escutar o que geralmente permanece silenciado. Um movimento de desaceleração radical ao lado de quem já muito caminhou.
Na capital paranaense, 26 participantes, com idades entre 60 e 87 anos, se entregaram a um processo de criação que desafia o tempo e reinventa a cidade. Muitos deles não têm formação artística. Alguns vivem com Alzheimer. Outros enfrentam limitações de mobilidade ou estão em situação de vulnerabilidade social. Todos e todas foram convidados a fazer do próprio corpo e da própria trajetória matéria-prima de criação. A memória como força propulsora, o corpo como arquivo vivo, e a presença como ato de reivindicação de um tempo e um espaço para si: aqui, agora.
A dramaturgia se estrutura em três momentos fundamentais: o encontro inicial com o público, a criação coletiva a partir das lembranças e, por fim, a encenação dessas narrativas em formas autoficcionais – individuais e coletivas. Canale costura ficção sem atenuar as adversidades, e sem renunciar às singularidades que emergem de cada convivência. Em toda cidade, um novo grupo, uma nova tessitura. Em vez de assumir personagens, os participantes se recriam – mesclando vida e invenção com uma liberdade que, muitas vezes, a realidade não permite. Trata-se menos de representar e mais de se reapresentar ao mundo.
Durante a peça, o público é convidado a caminhar com os artistas por cinco espaços centrais de Curitiba. Cada deslocamento desenha uma cartografia afetiva, revelando não apenas relatos pessoais, mas também os silêncios, os esquecimentos, as camadas invisíveis que permeiam o envelhecer em nossa sociedade. A encenação parte do Teatro Guaíra, atravessa o centro histórico e retorna à Praça Santos Andrade — em um percurso quase circular, que devolve à cidade suas próprias memórias esmaecidas. Cada parada, cada fala, cada gesto ou canção encena não apenas um testemunho individual, mas um modo coletivo de resistir ao apagamento. Uma insistência em existir publicamente.
Em Curitiba, conhecemos figuras como Chico, que passou dez dias trancado em um aquário urbano; Dona Mide, de 87 anos, que se apresenta como guardiã das lembranças; Issao, que canta Frank Sinatra em japonês; e Tita Coty, a “poeta do otimismo”. Cada um revela uma faceta distinta do envelhecer, subvertendo estereótipos com delicadeza e humor – como na cena em que um grupo de idosos, encapuzados, empunha armas cenográficas para reivindicar sua “Casa dos Artistas”. A velhice, aqui, não é sombra, mas luz tênue que insiste em brilhar apesar das contradições do mundo – talvez por isso mesmo, esta edição da obra pudesse ainda se expandir com um olhar mais atento às questões raciais e de gênero. Em algumas cenas, optou-se por manter as mulheres muito ligadas aos desejos de figuras masculinas, como se suas presenças ainda precisassem ser justificadas ou validadas por homens. Esse gesto reforça estruturas simbólicas que o próprio projeto parece querer desestabilizar. Além disso, ao adentrar manifestações culturais como o samba e o fandango é fundamental atentar-se às questões raciais que nelas residem – a presença de mulheres negras, suas posições, modos de articulação e centralidade dentro dessas culturas. Reconhecer essas camadas não é apenas uma questão de representação, mas de escuta: ouvir o que os corpos dizem, não apenas no que contam, mas em como ocupam, respondem, se impõem ou escapam. Nesse sentido, a contradição aparece justamente quando a proposta de abertura à diferença corre o risco de reproduzir, ainda que involuntariamente, os apagamentos que tenta combater.
A presença de A Velocidade da Luz na 33ª edição do Festival de Curitiba é uma escolha ao mesmo tempo delicada e radical: um teatro que escuta antes de falar, que cede espaço antes de ocupar, que se realiza nos corpos que tantas vezes já foram considerados à margem da cena.
Um teatro do cuidado, da lentidão, do detalhe: do passo contido, do olhar alongado, do silêncio que carrega uma vida inteira. E talvez aí resida a imagem mais bonita do que foi esse espetáculo: não a velocidade da luz como fenômeno físico, mas como evocação daquilo que, mesmo imperceptível, pode transformar.
Porque há, sim, outro tipo de velocidade – aquela que não mede distâncias, mas sim a profundidade dos encontros. E outra forma de luz – aquela que não se vê, mas que ainda assim incide e revela.
No fim, talvez não seja possível dizer onde termina a arte e começa a vida. E talvez esse seja, justamente, o gesto mais poderoso do projeto: nos confundir – suavemente – até que sejamos levados a repensar como olhamos, quem vemos, com quem escolhemos caminhar. Talvez o teatro seja, afinal, isso: um lugar onde se anda junto.
A peça A Velocidade da Luz foi apresentada dias 5 e 6 de abril no Festival de Curitiba
Criação, texto e direção: Marco Canale Assistência de direção: Amanda Leal Produção Local: Inés Gutiérrez
Elenco: Adalberto Machado, Alda, Ana Baby, Vivi de Jesus, Carlos Alencastro, Conchita, Mide, Elaine Noeli Destro, Elza Maria Gonçalves, Tita Coty, Gina da Leões, Chica Merlo, Chico Pennafiel, Issao Omoto, Geyisa Costa, Dito Salgado, Luíza Bahr, Marco Mocochinski, Mary Maresch, Marlene Kucarz, Nancy Beatriz, Nautilio Portela, Norma Kolczycki, Raquel Rizzo, Rita Franco, Sonia Hoffmann, Vanda Porto
Desenho e Operação de Som: Marcos Paim
Design Gráfico: Pac Calory
Cenotécnico: Alec Mattos
Assistência logística: Vithória Cecilia Soares da Silva, Mainu Barros Giordani, Iyami Barros Giordani
Produção: Corpo Rastreado – Marô Zamaro
Música ao vivo: Leões da Mocidade: Renato Makito, Clodoaldo Fernandes, Xande Lopes, Jacson Lopes, Alyson Lopes, Letícia Felizardo, Gérson Preto, Kal William, Roberto e Jeferson Lopes; Grupo de Fandango Meu Paraná: Mide Bahr, Werner Bahr, Luíza Bahr, Alex Calazans, Veronica Calazans e Rodrigo Mendes.
Realização: FESTIVAL DE CURITIBA-33° EDIÇÃO.
Agradecimentos: UFPR / AINTEPAR / Bicicletaria Cultural / Café Mafalda / Casa da Memória / Clube da Gente / Ecohouzencoworking / Escola de Samba Leões da Mocidade / Fundação Teatro Guaíra / Grupo de Fandango Meu Paraná / Joaquim Livraria / SESC Centro / SESI Cultura / Teatro Barracão EnCena / Alex Calazans /Beatriz Batistella Nadas / Dóris Teixeira / Eluane Sanchez / Gabriel Serratto / Jaqueline Albuquerque / Karine Kawamura / Marcelo Sutil / Veronica Bahr/ Calazans / Werner Alfrefo Bahr / Ana Madureira / O mapa foi cedido gentilmente pelo MUPA – Museu Paranaense e é parte do seu acervo cartográfico.