Crítica do espetáculo Sebastião
Por Guilherme Diniz
Enquanto o mundo lá fora era assolado pela violência, a miséria e a desesperança, um punhado de pessoas, alquebradas e desgostosas, tentava, em um modestíssimo bar, conferir um sentido luminoso para suas vidas. Entre uma e outra bebida, sonhos eram alimentados, laços de amizade, construídos e até o amor encontrava espaço para florescer no famoso Nick’s Bar. Em suma, este é o enredo da premiada peça The time of your life, escrita por William Saroyan em 1939, isto é, um momento histórico especialmente conturbado: a Segunda Guerra Mundial apenas começara, os horrores do nazifascismo se alastravam e o escombros da Crise de 1929 ainda caíam pesadamente sobre os mais pobres, nos Estados Unidos. Cercado por tais ruínas, medos e incertezas, um boteco em São Francisco abrigava aqueles marginalizados por uma sociedade ancorada no capitalismo, na ideia de sucesso e na discriminação sociorracial: mendigos, prostitutas, artistas fracassados e gente preta. Se na rua, nenhum deles encontrava acolhimento ou respeito, da porta para dentro, no calor de um botequim fortemente musical, a alegria, a doçura, e os devaneios podiam ser, ao menos, experimentados. A tradução brasileira da peça, divertidamente mais sugestiva do que o original, é: Nick Bar: álcool, brinquedos e ambições; eis uma combinação peculiar para afugentar o abatimento.
A princípio, esta é, guardadas as diferenças, a ambiência de Sebastião. O espetáculo do grupo manauara Ateliê 23, acomoda-nos em uma mesa do icônico Bar Patrícia, um espaço de beleza e extravasamento para corpos e afetos distantes dos padrões heteronormativos. Agora, imaginemos tal proeza em Manaus nos anos 1970, um dos momentos mais bárbaros da Ditadura Civil Militar (1964-1965). Os paradoxos, contidos na obra de Saroyan, ganham novos e sombrios contornos: de um lado, a perseguição política, as torturas, o conservadorismo e a censura, do outro um recinto aberto a uma vasta gama de experiências, expressões e humores transviados. Eis um oásis de liberdade possível em meio à secura da repressão, um enclave de cor rodeado pelo regime brutal. É esse o ponto de partida para a direção de Eric Lima e Taciano Soares, inspirada no livro Um bar chamado Patrícia, de Bosco Fonseca.
Diante de uma montagem que revisita um fragmento tão tempestuoso de nossa história cultural, nossas expectativas foram inflamadas. Ora, desejávamos compreender como aquele incomum e explosivo estabelecimento atravessou o seu tempo. Quais as negociações e os enfrentamentos realizados? Quais estratégias foram adotadas para despistar o sistema? Quais suas contradições sociais e políticas? Qual o seu legado físico e/ou simbólico? Lamentavelmente nada disso apareceu. O bar Patrícia e seu intrincado contexto são convertidos em mero pano de fundo. No primeiro plano, surgem os conflitos ora melodramáticos, ora farsescos das sete drag queens que trabalham no local. Nem como mito, nem como realidade histórica os complexos significados do estabelecimento são profundamente escavados. O memorável bar se transforma em uma baladinha comum, sem qualquer singularidade, um palco para os conflitos, desabafos e performances avulsas. Ao cabo, Patrícia se resigna a ser tão somente um letreiro colorido sobre o palco (que, aliás, logo irá sair). Acreditávamos que um grupo tão afeito à investigação do passado, como o Ateliê 23, teria, em termos historiográficos, algo mais denso a nos dizer.
A situação torna-se ainda mais problemática quando, de súbito, o bar se transforma em igreja. A atmosfera festiva e irreverente do início, em que se ouvia Bee Gees ou a banda Chic, e onde os copinhos de cerveja circulavam alegremente por entre o público, é abandonada em prol de um culto deveras estranho. Estávamos começando a aproveitar a festa, curtindo a música, e, repentinamente, jogaram água no nosso chopp. A partir desse ponto, o espetáculo mergulha na pura exposição do sofrimento causado pela homofobia. Os relatos de dor passam a dominar a montagem. Cada artista, lamentoso, conta-nos como as normatividades lhe causaram um sem-número de aflições. Em uma realidade absurdamente letal para tantos corpos e orientações dissidentes, o ímpeto de revidar a injúria e denunciar a opressão se afigura quase como uma necessidade, um expurgo, uma ânsia de regurgitar tantas pressões e silenciamentos. Contudo, os depoimentos praticamente literais, carregados de lágrimas e pesar, ainda que combativos, continuam a ser pautados pela opressão, reiteram o panorama violento num círculo vicioso incapaz de visitar outras facetas, contradições e delícias de nossas existências viadas. A homofobia, mesmo que seja para negá-la, continua a determinar a visão artística, tolhendo voos imaginativos e poéticos para além da dor.
Doravante, o santo, cujo nome dá título à peça, se apodera do espaço. O mito de São Sebastião, tornado padroeiro da comunidade LGBTQIAPN+, é evocado a fim de confrontar as tantas discriminações sustentadas pela heterocisnormatividade. Se “todo amor é sagrado”, como nos diz a canção, e se ele é bondoso e não maltrata, como nos dizem as Escrituras, por que certas formas de afeição e carinho são atacadas? A lendária trajetória de um mártir sacralizado, que supostamente amou outros homens em segredo, decerto embeveceu o grupo no seu propósito de questionar os conservadorismos, especialmente os religiosos, que não aceitam, ao menos publicamente, as distintas faces do amor (e do desejo).
Richard Kaye, em seu magistral ensaio, Losing his religion: Saint Sebastian as contemporary gay martyr (Perdendo sua religião: São Sebastião como um mártir gay contemporâneo, em tradução direta), analisa como as incontáveis representações de Sebastião de Narbona (o soldado romano que sacrificou a vida em nome do cristianismo) foram adquirindo, ao longo dos séculos, conotações sensuais, ambiguidades eróticas até ser apropriado por setores da cultura queer. De um santo menor, invocado na Idade Média para afastar as moléstias, passou a ser um homem de beleza apolínea no Renascimento; de um ideal de decadência “andrógina”, segundo a moral e o cientificismo tacanhos do mundo vitoriano, adentrou o século XX, convertendo-se em símbolo de uma certa consciência/identidade homossexual. Muitos artistas e pensadores (a lista é longuíssima) encararam São Sebastião por diferentes prismas: uma manifestação sadomasoquista do prazer masculino; o jovem afeminado que aceita, com irônica satisfação, ser penetrado por flechas impiedosas; uma junção entre o sagrado e o fetiche; a agonia lasciva; uma tríade de dor, prazer e perversão contrária às práticas sexuais medíocres e comportadas etc. Como se vê, as releituras são muitas e paradoxais.
A encenação, porém, não parece explorar as complexidades e ambivalências do mito. Os múltiplos sentidos de um santo, que transitou por deleites e dissabores, somem. Ficamos com apenas uma dimensão: a dor e o sofrimento descomunais. A figura do corpo martirizado e a exacerbação da violência, pilares centrais da segunda parte da peça, dominam o discurso cênico, sufocando os momentos solares, as possibilidades (ainda que cerceadas) de beleza e a reafirmação da vida.
Sintomática e exemplar é a cena em que Taciano Soares relata um grave caso de abuso sexual. O discurso (porventura autobiográfico), carregado de gritos e arroubos, dá-nos uma representação, por assim dizer, gráfica do estupro. Na sequência, ouvimos: “Nunca vamos deixar de ser Sebastião”. Não haveria aí um apego, talvez inconsciente, talvez a contragosto, à imagem da vítima, ao sangue derramado, como se não houvesse outras paisagens e figurações possíveis? Como impedir que a dor, socialmente imposta, defina nossa autoimagem e nosso horizonte? As contradições, entre limites e potencialidades, da iconografia de São Sebastião não mereceriam um tratamento cênico mais minucioso?
Por certo, há no espetáculo passagens que ultrapassam a pura dor. Às vezes reponta um beijo ou uma pegação eletrizada por luzes estroboscópicas. Por razões insondáveis, a encenação reproduz um programa de TV, conduzido por Lady Sinty (Jorge Sabóia), e até nos brinda com uma roda de santos dançantes ao final. Entretanto, esta colcha de retalhos tão dispersiva apenas põe a descoberto a fragilidade de uma estrutura dramatúrgica incapaz de estabelecer cortes, ênfases e prioridades a fim de adensar e aprofundar as ideias centrais. Aliás, a própria articulação entre os dois grandes momentos, o bar e o louvor, não se efetiva cenicamente. Paira uma impressão geral de aleatoriedade e adição indistinta de elementos que não formam um desenho cênico orgânico, preciso.
À guisa de conclusão, temos duas últimas considerações.
O Ateliê 23 é um aguerrido grupo fortemente interessado em tomar as turbulências e as cintilações da história de Manaus como matéria-prima para as suas criações. Esse comprometimento artístico e político é notavelmente significativo para um alargamento cultural dos nossos teatros contemporâneos e suas historiografias, no plural. Todavia, ao revisitar o passado, pesa ainda sobre o coletivo um apego à exibição direta ou literal da dor. Em Cabaré Chinelo, sua penúltima montagem, este impasse estava também presente. A crítica teatral Pollyanna Diniz, ao analisar a peça, integrada à programação do Festival de Curitiba de 2024, observou: “É como se as histórias individuais, mesmo que ficcionais, mas que possuem particularidades, nuances, perdessem força diante de um conjunto que se faz único, porque o que sobressai é a violência”. O mesmo problema persiste em Sebastião. As sete drag queens e os sete artistas que as interpretam tornam-se um único bloco cimentado principalmente pelo sofrimento.
Por fim, é sabido que William Saroyan (lembram-se do Nick Bar: álcool, brinquedos e ambições?) foi, por alguns críticos, acusado de ser romanticamente idealista, visto que, em sua dramaturgia, praticamente todos os melancólicos frequentadores do bar encontram um belo final. Talvez exista mesmo uma gota açucarada de idealismo em sua obra. Mas é que o autor mira sempre na capacidade de transformação da vida, nas possibilidades de contornarmos os abismos, aparentemente, invencíveis. As estatísticas, por mais duras, não são maiores, nem mais fortes que os sonhos, lembra-nos uma de suas personagens. É isso.
O espetáculo Sebastião foi apresentado nos dias 5 e 6 de abril, no Festival de Curitiba de 2025.
Ficha Técnica
Direção: Eric Lima e Taciano Soares
Elenco: Andiy, Elias DiFreitas, Eric Lima, Francis Madson, Jorge Sabóia, José Holanda e Taciano Soares
Dramaturgia: Daphne Pompeu, Eric Lima e Taciano Soares
Assistência de Direção: Andira Angeli e Emily Danali
Direção Musical: Eric Lima, Guilherme Bonates e Taciano Soares
Composições: Eric Lima; Banda e Arranjos: Bruno Rodriguez, Guilherme Bonates, Luana Aranha e Mady
Figurino: Andiy, Eric Lima e Francis Madson; Iluminação: Lore Cavalcanti e Paulo Martins; Cenografia: Eric Lima e Taciano Soares;
Cenotécnica: Célio Tavares, Lore Cavalcanti e Paulo Martins;
Coreografia: Eric Lima e Jorge Sabóia;
Fotografias: Allícia Castro, Hamyle Nobre, Humberto Araújo, Jéssica Laranja e Rômulo Juracy;
Produção Executiva (processo): Vívian Oliveira; Produção Executiva (temporada): Emily Danali; Assessoria de Comunicação: Manuella Barros.