Crítica de “Eu tenho uma história que se parece com a minha”
Por Daniele Avila Small (RJ)
Foto: Humberto Araujo.
As apresentações do trabalho de Tetembua Dandara realizadas nos primeiros dias de abril de 2023 na Mostra Lúcia Camargo do Festival de Curitiba acontecem como uma espécie de cornucópia de possibilidades de fruição. A obra é, como o Museu dos Meninos, um projeto multimodal: se expressa em diferentes modos de criação e circulação. No caso, o trabalho envolve uma apresentação ao vivo e um fotolivro que os espectadores podem pegar e levar consigo. São obras complementares, mas autônomas. A temporada do projeto em São Paulo reuniu também algumas conversas que podem ser assistidas no canal do YouTube do CCSP. Tanto o livro quanto a peça documentam/compartilham o olhar e a escuta da artista para as mulheres da sua família. As ações para abrir a escuta e convidar à presença precisam mesmo de estratégias variadas – e aparentemente simples.
O espaço é concebido como uma instalação, mas também pode ser reconhecido como cenografia de teatro. As samambaias e enfeites luminosos remetem aos espaços conviviais de uma residência familiar, mas também a um vocabulário visual corrente nas artes da cena na atualidade. O acontecimento é nomeado como performance, mas isso não impede que seja visto como teatro, afinal, a diferença entre as duas categorias pode ser mais uma questão de ênfase (e de tradução) do que uma separação entre linguagens. O teatro é essa coisa que come de tudo, fagocita dispositivos, assimila intersecções com outras práticas artísticas e com pesquisas de outras áreas de conhecimento, que acontece quando as dramaturgias são responsivas aos projetos, aos seus materiais e comprometimentos éticos.
Dentro do repertório a que pude assistir no festival (um tanto restrito à mostra principal), Eu tenho uma história que se parece com a minha também ficou marcado por propor uma relação espacial distinta com o público, aproveitando a amplitude da Casa Hoffman e chamando atenção para a vocação multiuso do espaço. O público é convidado a se espalhar entre cadeiras e almofadas das quais pode ver alguns nichos que remetem aos cômodos da casa de alguém: um quintal onde as crianças podem brincar, um quarto, uma sala, uma cozinha. O chão está coberto de toalhas plásticas com estampas variadas, como uma colcha de retalhos.
Um carrinho com uma vitrola e um pilha convidativa de discos de vinil está ali para escolhermos, junto com as anfitriãs, algumas canções. Uma geladeira com cerveja e suco para compartilhar. Na cozinha, panelas com moqueca de banana da terra, bobó de palmito e outras iguarias. Por ali circulamos, comemos e bebemos, alguns dançam um pouco, uma criança “virada no açúcar” corre freneticamente entre nós, até cair e chorar buscando o colo da mãe (um clássico).
Em determinados momentos, as mulheres da família vêm falar com a gente, endereçando a fala a todos os presentes, contando um pouco de si, às vezes como uma convocação. Tetembua as apresenta. A avó, Dirce Poli, de 95 anos, que não está literalmente presente por conta das dificuldades da viagem para uma senhora de sua idade, veio por um depoimento gravado em vídeo, ao qual assistimos por uma TV de tubo. O aparelho de décadas passadas é como uma máquina do tempo. A simultaneidade de presença no tempo e no espaço não é a única forma de interação.
Escutamos também os depoimentos da irmã Mafoane Odara e da mãe Neuza Poli, que, como mãe, também aconselha. As falas vêm carregadas das histórias da vida. Parece que os elementos da cena começaram a “fazer a peça” bem antes da entrada do público. Isso fica evidente na comida. O jantar – que em parte se termina de cozinhar já com a nossa presença no espaço – evidencia as aproximações entre teatro e cozinha. Uma peça é como uma refeição: no processo de criação, está o repertório dos ingredientes, as técnicas de cozimento, a tradição em que se insere, o toque autoral de quem se arrisca, a escolha da louça, a sensorialidade da degustação, a sensação de saciedade. Em ambos os casos, pode dar tudo errado, até entre os mais experientes.
Hoje em dia, toda peça que tem comida me dá saudade de Bola de Fogo, solo de Fabio Osório Monteiro que esteve em Curitiba na edição passada, na programação do Interlocuções. O acarajé que ele prepara e vende no final não é apenas um acarajé, é teatro comestível, super-alimento simbólico. Talvez como o biscoito-arte da Regina Silveira, que só conheço por relatos e documentos. Certamente é o caso da comida servida em Eu tenho uma história…, que comemos enquanto ouvimos, vemos e pensamos. As sobras que alguns levam em potinhos de plástico evidenciam que as peças continuam sendo apresentadas em outras plataformas de afeto e pensamento depois dos aplausos (ou da hora de cantar parabéns).
A dramaturgia de Tetembua faz uma operação bastante sofisticada. Ela nos apresenta as regras básicas, pré-combinadas, mas sem impor um programa performativo. O programa está lá, mas passamos por ele como se estivéssemos à deriva. Do tanto que fica, entre os docinhos do final, levo comigo a proximidade entre o teatro e a festa por um viés que não era evidente para mim, mas que passou a ser depois do relato inicial da artista: a festa como um lugar de escuta. Não é tanto no discurso dos textos nem nas tecnicalidades da criação que o espetáculo manobra as questões e as imagens que deseja articular. Isso se dá mais pelo modo de colocar o público em sintonia com certo estado de presença, com a vontade de ouvir o que as pessoas em volta têm a dizer, estado que acessamos quando estamos entre pessoas que admiramos e amamos. Forjar essa trama não é um trabalho pequeno.