Crítica da peça “O grande dia”
Por Daniele Avila Small (RJ)
Foto: Humberto Araujo.
O grande dia é uma das peças que compõem a Mostra de Solos do Festival de Curitiba, iniciada nos últimos dias de março de 2023. Essa crítica foi escrita nesse contexto e, portanto, é atravessada por outros espetáculos apresentados logo antes ou logo depois. Esses atravessamentos nos convidam a ver as peças em perspectiva e não como um fato isolado – o que já acontece no dia a dia das temporadas dos espetáculos na experiência de qualquer pessoa, mas que parece ampliado no contexto de um festival. Os encontros constantes entre artistas, críticos e pesquisadores em festivais têm também o efeito de afiar as conversas, aguçando o pensamento crítico sobre as criações. Nesse sentido, esse texto também se refere, de algum modo, ao debate que aconteceu depois da primeira apresentação feita na Casa Hoffman e às linguagens que têm despertado conversas mais aprofundadas. A discussão sobre masculinidades aqui presente também é inspirada pelo que escrevi sobre Arqueologias do Futuro, outro solo do Rio de Janeiro que se propõe a fazer um enfrentamento incisivo ao racismo.
Uma das principais características de O grande dia me chamou atenção como um incômodo: a afirmação de uma masculinidade monolítica, como um pacto de adesão à manutenção de determinados valores patriarcais. Reinaldo Junior, ator e idealizador do projeto, tem refletido sobre as aproximações entre o ringue e o palco a partir de sua trajetória como lutador de boxe. Seu livro sobre o método Black Ninja expõe sua pesquisa no trânsito entre o ofício do ator e o do atleta. Pode ser até um tanto evidente, portanto, que a masculinidade apareça no palco com uma tônica mais afirmativa, como uma escolha consciente e trabalhada.
Logo no primeiro contato entre a peça e o público, uma atitude impositiva se destaca, quando o produtor do espetáculo, Jeff Fagundes, recebe o público na frente do palco e se endereça aos presentes exigindo um boa noite animado, extrovertido, como se não tivéssemos acabado de entrar em um ambiente escuro, que convidava mais ao recolhimento do que à atitude expansiva de quem vai assistir a um stand up ou participar de um programa de auditório. Somos convocados a dizer boa noite do jeito que ele quer que a gente diga boa noite.
Quando Jeff nos conta que a peça tem dois lados, e que vamos torcer para um deles, aparece também outro problema: o papel do espectador está a priori definido e resolvido. A única relação possível é a da concordância. Se a luta é a do bem contra o mal, o jogo com a dramaturgia fica pouco convidativo. Nos resta assistir concordando, acenar positivamente e aplaudir no final. As poéticas da adesão incondicional – um problema do teatro, não exclusivo dessa peça – têm me instigado a pensar.
Há uma tradição no pensamento sobre teatro (com a qual não concordo) que postula que o drama é o gênero teatral por excelência. Aqui me refiro ao drama enquanto gênero, forma da literatura dramática em que a ação acontece em um universo ficcional fechado, em que há um conflito que se desenrola na materialidade dos diálogos e nas relações interpessoais entre personagens, sendo estes personagens figuras distintas dos atores e atrizes que os “encarnam”. O trabalho de André Lemos, que assina dramaturgia e direção, caminha numa linha tênue e oscilante de desvio e adesão a essa tradição. A estrutura episódica e expositiva do texto, que apresenta uma galeria de personagens históricos e discursos, com endereçamento frontal ao público, não é colada no drama. Mas a noção de atuação que pauta o trabalho de Reinaldo Junior nesta peça – e que também dá a tônica de um trabalho anterior do grupo, Esperança na Revolta (a que assisti no Rio de Janeiro no Terreiro Contemporâneo na apresentação realizada para os apoiadores da peça no Catarse) – é intrinsecamente filiada ao drama.
Nessa tradição, o que se reconhece como bom trabalho de atuação envolve uma dedicação especial à composição de personagem. O ator ou atriz deve desaparecer, dando ênfase a um corpo e uma voz construídos artificialmente, com trejeitos, ritmos, timbres diferentes. Nessa tradição, o ator ou atriz precisa “mostrar serviço” de atuação. Assim, uma peça em que um ator faz muitos personagens, ou faz um personagem histórico imitando-o bem, muitas vezes funciona como uma isca para o reconhecimento daquele artista. Quanto mais o esforço do ator é visível, mais imediato é o reconhecimento por parte do público em geral e das pessoas de teatro que têm identificação com essa tradição. O ideal de virtuosismo é um ponto de encontro entre essa noção de atuação e a ideia de performance no esporte.
Esse tipo de atuação me causa a seguinte perturbação: em vez de assistir à peça, eu fico assistindo ao ator ou à atriz fazendo a peça. O desejo de espetacularidade na atuação me distrai das questões que o espetáculo propõe. Em O grande dia, isso fica mais evidente a partir do único momento em que cai essa cortina formada pela busca do virtuosismo. Na segunda metade do espetáculo, se não me engano, depois de já ter entendido que não apareceria outra ideia de masculinidade em cena (o vídeo com Rubens Barbot não altera essa característica da peça), acontece, por alguns instantes, uma abertura significativa, com a aparição de um outro homem na cena, outro Reinaldo. Ali, o ator se apresenta como ele mesmo, mostra uma foto da família, se refere ao depoimento do pai. Aquela suavidade intempestiva veio com brilho, com beleza, colocando em pauta outra noção de teatro e fazendo surgir um ator mais à vontade com a própria técnica. É quando melhor aparece a dimensão autoral da atuação. Pena que durou tão pouco. Logo o regime da impostação voltou a dar as cartas na linguagem do espetáculo.
A partir do impacto dessa fissura, revejo a peça na memória, imaginando que todos os outros momentos, os discursos e personagens, poderiam encontrar melhor morada naquele corpo mais perto da vida, menos montado no teatro dramático, e que as cenas poderiam ser mais atravessadas pelo risco de deflagrar fragilidades e por outras políticas do teatro. Alguns dias depois, o trabalho de Tetembua Dandara, Eu tenho uma história que se parece com a minha, que desvia radicalmente do drama (e do ringue), me fez enxergar, mais uma vez, que o recuo da busca pelo virtuosismo abre caminho para uma vivência de teatro em que a ideia de grandeza aparece justamente quando trabalhada pelo avesso.