Crítica do espetáculo “Brenda Lee e o palácio das princesas”
Por Francis Wilker
Foto: Humberto Araujo.
Curitiba, 05 de abril de 2023.
Olá, Brenda, como vai você?
A gente não se conhece, mas gosto de imaginar como seria se você recebesse uma carta vinda do futuro. Já se passaram quase três décadas desde que você se foi, naquele violento maio de 1996. Se o seu tempo ainda fosse contado como o nosso, hoje você seria a Dona Brenda Lee, uma travesti com 75 anos. Por um instante, é como se eu pudesse fechar os olhos e ver como o tempo foi bordando as linhas das suas mãos, os sinais no seu rosto coberto de cor, a sua voz que estaria carregando mais de meio século vivido. Que sonhos você teria hoje? O que estaria fazendo? O que pensaria de tudo que tem acontecido no seu país? Que perfume usaria? Ao fabular sua velhice, me pergunto: eu já conheci uma travesti idosa? Acho que não. E isso, infelizmente, explica muita coisa. A poeta mineira Ana Martins Marques diz mais ou menos assim em um de seus versos: “tudo que morre com quem morre”. Você dizia não ter medo da morte e até brincava sobre todo mundo que iria encontrar quando chegasse a sua hora, mas não consigo deixar de pensar em tudo que morreu junto contigo.
Não sou muito bom em fazer contas, mas as pesquisas aqui no meu tempo dizem que a cada 100 brasileiras/es/os, 2 são transgêneras ou não-binárias. Então, Brenda, são muitas vidas que nos fazem ver que a humanidade é diversa demais para ser reduzida a homens e mulheres cisgêneros/as. Mas, se por um lado os cálculos dão a ver tantas existências, por outro comprovam também que o preconceito e a violência fazem do Brasil, há 14 anos, o chão e o céu onde mais se mata pessoas trans em todo o mundo. E você, como muitas outras, não teve o direito de colocar os pés no futuro, de ver o tempo entalhando o próprio corpo feito uma escultora. Não pôde “cantar até o fim”, como gritava a magnífica Elza Soares até os últimos dias de uma longa vida. Falo da Elza porque, por ser mulher negra, ela sabia muito bem dos riscos de um corpo não conhecer o futuro. Penso na Elza, porque ela me lembra de toda a beleza que uma vida que se prolonga pode compartilhar. Evoco a Elza, porque ela nunca se permitiu descansar das lutas importantes por um país mais democrático e igualitário. Por isso, a cada vez que uma vida trans é violentamente interrompida, arrancada de nós, penso numa voz que não pôde cantar até o fim. Penso em tudo que a pessoa perde, no que seus amigos perdem, no que a própria humanidade perde. E, aqui no nosso país, temos perdido muito. Por isso, a frase da sua “mana” Jota Mombaça como título de minha carta para você. Veja o que ela nos diz:
Não vão nos matar agora porque ainda estamos aqui. Com nossas mortas amontoadas, clamando por justiça, em becos infinitos por todos os lugares. (…) Então eu vim para cantar à revelia. À revelia do mundo, eu as convoco a viver apesar de tudo. Na radicalidade do impossível. Aqui, onde todas as portas estão fechadas, e por isso mesmo somos levadas a conhecer o mapa das brechas (…) Aqui, onde apenas morremos quando precisamos recriar nossos corpos e vidas (…) Aqui, onde não somos a promessa, mas o milagre (2021, p. 14-15).
Brenda, gosto de pensar que um espetáculo de teatro pode ser também uma brecha, um canto à revelia, uma pulsão de vida, uma vingança contra a morte. Não sei se alguém já te contou, mas a Fernanda Maia e o Rafa Miranda criaram um musical que é uma grande homenagem à sua existência, com direção de Zé Henrique de Paula. Talvez não acredite em mim, mas quero que saiba que o seu nome está no título da peça: “Brenda Lee e o palácio das princesas”. Essa criação estreou primeiro como um vídeo (2021) e desde 2022 vem sendo apresentada em alguns teatros de São Paulo. Eu pude assistir ao trabalho numa noite muito emocionante do Festival de Curitiba. Espero que essa notícia te deixe feliz.
Se hoje te escrevo é porque o teatro trouxe você até mim, até nós. Ou, dito de outra maneira, o teatro nos levou até você. Então, a primeira coisa que preciso destacar é essa capacidade feiticeira e artesanal de uma arte tão antiga ainda ligar os mundos, criar pontes, trazer à tona vozes soterradas. Isso nos leva a questionar quais vidas queremos fazer vibrar por meio da arte que criamos. Quais histórias, questões e temas podem ganhar a boca de cena a partir de nossas escolhas artísticas e, com isso, mover e fazer mover outros projetos de sociedade, por mais utópicos que possam parecer. A arte como polinizadora de imaginários, criando em cena uma imagem que nos faça desejar outros futuros. Brenda, foi assim que te conheci e foi como se a beleza me tivesse tocado.
Eu sou um homem gay, do interior de Goiás, e vi com paixão cada minuto da sua vida encenada ali, diante dos meus olhos marejados d`água. A minha vivência é completamente diferente daquela de uma corpa trans, incomparável. Mas, apesar disso, tem algo no espetáculo que acessa o núcleo mais fundo do dentro da gente que também pertence à comunidade LGBTQIAP+, apesar de todos os privilégios de um homem gay e da dívida histórica do nosso movimento com as travestis – elas sim, o corpo em risco, a linha de frente no enfrentamento ao medo e ao ódio. Mas, acho que ali, afundado na cadeira da plateia, a sua vida tocou a minha por alguns instantes, porque sentado comigo estava a criança que eu fui e as memórias fundadoras de um sentimento de inadequação à norma vigente sobre o que se espera de um homem e de uma mulher, seja na escola, na família, na rua. Então, um segundo traço da peça que destaco é sua habilidade em configurar uma comunicação direta, empática e capaz de envolver públicos diversos, para além da comunidade travesti e LGBTQIAP+. Talvez, você esteja ficando curiosa para saber como a sua história ganhou essa proximidade do público, como está sendo contada, então vou compartilhar com você algumas impressões.
Na dramaturgia proposta, as cenas e acontecimentos vão tecendo para o público um imaginário ao seu respeito que encontra perfeita tradução numa frase associada à sua história: “anjo da guarda das travestis”. Assim, é como se acompanhássemos a jornada dessa travesti que foi um anjo da guarda para pessoas em situações muito vulneráveis. Em alguma medida, a história de Brenda Lee ganha a mítica de uma “heroína” dos mais desamparados. Essa estrutura dramatúrgica do espetáculo parece flertar com a abordagem sistematizada por um escritor norte-americano chamado Joseph Campbell (1904-1987), que ficou conhecida como “jornada do herói”. Campbell se debruçou sobre as narrativas, mitos e contos de fadas em diferentes culturas para identificar uma estrutura muito presente no modo como essas histórias são contadas. Por exemplo, ao longo da peça, testemunhamos o seu “desligamento do mundo comum” em busca de uma nova vida, que está na sua partida ainda muito jovem de Pernambuco para São Paulo, a cisão com a família, a vida dura de travesti de rua, enfatizada na letra de uma das músicas da peça: “você não duraria nem ao menos dez minutos se estivesse em minha pele pelas ruas da cidade”.
Depois de tantas lutas, vemos você em outra condição de vida, hospedando na sua pensão as travestis mais jovens, muitas delas expulsas de casa. Vocês enfrentando a perseguição policial, afinal, as lutas de uma heroína não dormem. Com a epidemia do hiv, a aids emerge como nova e assustadora doença, uma praga associada aos gays, às travestis. Medo, preconceito, dor, desamparo. É quando entra na história o personagem do Doutor Pedro (papel do ator Fábio Redkowicz), que sugere realizar o atendimento às travestis na sua pensão. Na estrutura da jornada do herói sistematizada por Campbell, essa etapa pode ser considerada o “encontro com o mentor”. A Brenda personagem, num primeiro momento, se ofende com a proposta do médico, por entender que ele preferia consultar as travestis num outro espaço para que não frequentassem a unidade de saúde. Depois, ela repensa e aceita a iniciativa, abrindo sua casa para o atendimento médico. No seu diálogo e parceria com o médico, brota um novo passo na sua jornada: a pensão se transformará numa casa de apoio às pessoas com aids e resultará numa primeira cooperação, histórica, com a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, abrindo caminho para que tanto a epidemia de hiv como as vidas trans se tornassem assuntos de saúde pública a qual todos, todas e todes têm direito. Aliás, Brenda, você viu nascer o Sistema Único de Saúde (SUS) e ele continua sendo uma das maiores conquistas do nosso povo.
É por meio dessa maneira de narrar sua história que vemos a Caetana, primeiro nome que você usou e que era uma derivação do seu nome de batismo, ir se transformando na figura mítica, lendária, de Brenda Lee. Na estrutura da jornada do herói de Campbell, entre lutas, inimigos, provações, recompensas, o herói retorna outro, transformado. No caso da nossa “heroína” Brenda Lee, o interesse amoroso por um homem que prestou serviços em sua casa de apoio e que traiu sua confiança tece a sua luta final: o seu encontro com a morte. Assim, na dramaturgia do espetáculo Brenda Lee e o palácio das princesas, temos três fios narrativos que se articulam: a sua história (a peça faz uso do recurso de um entrevistador em off que lhe faz perguntas e você comenta); as histórias das travestis que habitaram a pensão que são cantadas como números musicais numa boate; e o percurso de transformação da pensão em casa de apoio, demarcando seu envolvimento com as políticas públicas de saúde.
Minha querida, a peça é, sobretudo, uma celebração ao seu legado. Sua jornada transcende o plano mortal e se eleva como um exemplo, uma força viva e inspiradora de solidariedade, de amor, de determinação, de coragem. É como as atrizes cantam: “um patrimônio das travestis”.
Sabe, Brenda, após assistir ao espetáculo fiquei muito curioso em saber mais sobre você, suas contradições, conflitos, tropeços, sombras. A Brenda personagem é sempre forte, benevolente, positiva, incansável seja nas cenas de enfrentamento das contas a pagar, da violência policial, dos desafios com o atendimento às pessoas necessitadas, dos conflitos com alguma moradora da casa. Lembra do samba Volta por cima, do paulista Paulo Vanzolini? Foi gravada em 1962 e depois a Elza Soares também gravou:
Ali onde eu chorei
Qualquer um chorava
Dar a volta por cima que eu dei
Quero ver quem dava (…)
Reconhece a queda e não desanima
Levanta, sacode a poeira
E dá a volta por cima.
Não te conheci, a gente nunca tomou um café, mas, certamente, como no samba, existem quedas e lágrimas que desenhariam mais camadas e complexidades nesse rastro de vida atrás de você. Acredito que isso a tornaria ainda mais humana e próxima de qualquer outra pessoa. O desafio no uso de certas estruturas para se contar uma história é exatamente esse: o risco iminente de reduzir a complexidade de uma vida a uma face única. Esse modo de estruturar uma narrativa que te contei, em diálogo com a jornada do herói, é de fácil assimilação pelo público e acabou sendo também uma ferramenta para o marketing, os programas de TV e as dinâmicas que regem o capitalismo que tenta transformar tudo em produto que possa ser rapidamente consumido. Ao dizer isso, sei também que o apagamento das vidas travestis em nosso país deve criar desafios imensos para um trabalho histórico que pretende recuperar narrativas.
Um outro desafio que também parece operar nessa mesma chave da simplificação é a própria investigação das sonoridades e da música como linhas de força de um espetáculo. O gênero musical, muitas vezes, parece recorrer a um modelo de fácil resolução, em que a canção tem mais o papel de reforço de uma ideia/tema. Isso acontece, por exemplo, na música que cada uma das moradoras da pensão canta e que tem a função de apresentação de suas histórias e sonhos. Assim, o investimento numa pesquisa dedicada à dimensão acústica da cena parece estar sempre em segundo plano, o importante é assegurar que o tema seja “entregue”. Poderíamos nos perguntar sobre as possibilidades da música como contraponto, como crítica, sobre a pesquisa de instrumentos e arranjos a partir das qualidades vocais das atrizes e traços das personagens, e, também, de uma preocupação com o entorno acústico da cena que, para o pesquisador César Lignelli, tem relação com todos os sons referenciais da cena e que não se configuram como palavra e nem música. Um espetáculo que evoca a rua, as boates, o posto de saúde, a delegacia e também o quarto, a casa, permitiria trânsitos entre espaços públicos e privados que poderiam ser muito ricos para a dramaturgia sonora da peça.
Brenda, ainda que o musical dedicado a você tenha investido nessa espécie de “jornada da heroína” e que, como toda obra de arte, se possam apontar críticas à dramaturgia, à pesquisa sonora e também à cenografia, que optou mais pela resolução simples da configuração dos espaços e menos pelas possibilidades de extrair “luxo” da precariedade, existe nele um gesto incontornável. Reside nele um deslocamento importante: uma travesti como “heroína” é inscrição política contundente num país como o nosso, onde quase todos os heróis são homens cis brancos. Fazer as pessoas saírem do teatro com vontade de saber mais sobre a sua vida, de se aproximar de outras manas, de rever seus preconceitos, de achar que deveríamos ter ruas com o seu nome, é um feito valioso e que o inscreve ao lado de outras produções dos últimos anos na historiografia da cena trans brasileira. Caetana, não posso deixar de falar também de outro aspecto muito tocante, o espetáculo é, de algum modo, um encontro de gerações trans, um aceno à transcestralidade que, apesar de qualquer diferença, liga as travestis de ontem, hoje e amanhã, fazendo do palco uma celebração a essas vidas, aos caminhos que umas foram abrindo para as outras, apesar de toda a dor.
Brenda, a sua peça agora começa a viajar e deve – espero eu – ganhar os teatros do Brasil. Não poderia deixar de dizer que as atrizes Andrea Rosa Sa (Raissa), Leona Jhovs (Blance de Niege), Olivia Lopes (Cinthia Mineli), Rafa Bebiano (Isabele Labete), Tyller Antunes (Ariela Del Mare), ao lado de Verônica Valenttino (Brenda Lee), “entregam tudo” (uma gíria nova para a sua coleção). Se suas presenças no palco já inserem muitas dramaturgias e um gesto político importante para um novo projeto de país, a atuação delas – na singularidade da experiência e repertório técnico de cada uma –, nos hipnotiza, seduz, emociona e encanta.
Querida Brenda, eu nunca saberei se na sua fantasia mais íntima você imaginou que sua vida seria contada num espetáculo de teatro, que teria travestis participando de audições para cantar a sua vida e as das suas. Imagine elas pegando o avião, se hospedando no hotel das cidades, ensaiando, o público lotando um teatro, o escuro, a luz, você cantando até o fim. Eu sinto muito por você não poder testemunhar isso e, ao mesmo tempo, sinto muito por ainda ser necessária tanta luta das travestis para ocuparem espaços que também são delas, inclusive os espaços da arte. Fiquei me perguntando como eu poderia terminar essa carta, que notícias gostaria de te enviar do futuro. Sim, Brenda, as travestis, mulheres trans, homens trans, pessoas não binárias têm, pouco a pouco e com muito esforço, ocupado outros espaços da cidade, da história, do país. São conquistas que não apagam ou amenizam a dor, que não abrandam a luta, mas que nos dão conta de que “aqui onde não somos a promessa, mas o milagre”, algo está acontecendo que nos ajuda a desenhar no horizonte do nosso tempo outros futuros.
A travesti Symmy Larrat é a gestora da Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ do governo federal. No Congresso Nacional temos, pela primeira vez na história, as deputadas federais Erika Hilton, por São Paulo e a Duda Salabert, por Minas Gerais. Na música, somos embalados pela Liniker, a Linn da Quebrada, a Urias, a Mumutante. Nas artes do corpo e da palavra, a Renata Carvalho, a Fabia Mirassos, a Leonarda Glück, a Isadora Ravena, a Jota Mombaça, a Dodi Leal, a Amara Moira, a Ave Terrena, a Uyra Sodoma, a Noá Bonoba, a Helena Vieira, a Viní Ventanía Xtravaganza e a Vitória Jovem Xtravaganza. Eu sou professor de uma universidade federal no Ceará e, na minha sala de aula, tenho várias estudantes trans. Sei que isso não deveria ser incrível, mas é. A representante do centro acadêmico do nosso curso de Teatro é a Alessandra Flor, uma mulher trans que muito me ensina. No mês passado, a competentíssima atriz que faz o seu papel nesse musical, a cearense Verônica Valenttino, ganhou um importante prêmio. Um prêmio que existe há mais de três décadas e nunca tinha nem indicado uma artista travesti. Verônica ganhou o prêmio Shell como atriz, por São Paulo, justamente por te devolver à vida todas as noites em que sobe ao palco e canta, canta pelas travestis que vieram antes dela, antes de você, pelas que estão aqui e pelas que virão.
O meu melhor abraço!
Francis