Por Annelise Schwarcz

 

 

“Todo café” – André Vargas 

 

  • Oi, vó! Como estão as coisas por aí?

 

  • Oi, filhinha! Tá boa?

 

  • Não sei se a senhora lembra, mas eu tô aqui em Curitiba fazendo as críticas das peças de teatro e…

 

  • Uhhhh, minha neta crítica de teatro!

 

  • Pois é, vó, pois é… Às vezes nem eu acredito, mas como eu tava dizendo… eu tô aqui em Curitiba nesse Festival de Teatro, e eu lembrei muito de você com uma peça que assisti hoje chamada Bom dia, eternidade. Nela, tinha uma senhora que se vestia igualzinha a você – com esses conjuntinhos – e que tinha o sonho de ser cantora e somente agora, aos 74 anos, está realizando esse sonho no palco junto com essa companhia chamada O Bonde. Lembrei tanto de você, da forma como você vive cantando, canta até com música que não sabe a letra! Esses larará que você fica fazendo acompanhando as músicas, só pelo gosto de cantar junto. Ah, e tinha mais! A personagem dela também amava os bailes de dança da terceira idade, que nem você! Acho que você iria se identificar tanto… Engraçado que eu nunca pensei em você como uma pessoa artística, não sei dizer se você se descreveria dessa forma, mas vendo ela ali, no palco, comecei a te ver nessa luz também. Fiquei pensando como seria se você tivesse ali comigo… Sabe, vó, eles fazem uma dinâmica no final da peça, na qual eles perguntam o nome da senhora negra mais velha presente no dia daquela apresentação e dão esse nome à mãe dos personagens. E aí eu fiquei pensando que, se você tivesse lá, o nome da mãe seria…

 

  • Minha filha, pera lá! Você tá indo muito rápido!

 

  • Desculpa, vó! Me empolguei! Tá, vamos por partes. Existe essa companhia de teatro lá de São Paulo chamada O Bonde, um coletivo de artistas negros e periféricos de diferentes períodos da Escola Livre de Teatro de Santo André. A peça mais recente deles, essa que eu estava descrevendo agora, se chama Bom dia, eternidade. Essa peça é a terceira e última parte do que o grupo chama “Trilogia da morte”. A primeira peça da trilogia, Quando eu morrer vou contar tudo a Deus (2022), é um espetáculo voltado para o público infantil e conta a história de um menino africano encontrado dentro de uma mala tentando entrar na Ah, a peça é baseada em uma história real. Essa é uma das características dos trabalhos deles: ficcionalizar histórias reais e adaptar para o teatro. A segunda parte da trilogia é a peça-filme Desfazenda – Me enterrem fora desse lugar (2021). Essa peça narra a história de cinquenta crianças tiradas de um orfanato e levadas para o interior de São Paulo para trabalhar como escravizadas em uma fazenda.

 

  • Olha só, todas as peças atravessadas pelo tema da morte… a primeira sob a perspectiva da criança e, a segunda, voltada para o público adulto. É isso?

 

  • Isso! Mais especificamente, as peças abordam a questão da “necropolítica”.

 

  • Deixa eu ver se não tô ruim da cabeça. “Necro”, “necrotério”… Imagino que tenha alguma coisa a ver com morte. Política da morte? Acertei? É isso?

 

  • Perfeito! É exatamente isso. A senhora tá muito sagaz. Acho que essas palavras cruzadas que você fica escrevendo o dia inteiro funcionam mesmo!

 

  • Funciona, funciona, sim… faz um bem danado para a cabeça…

 

  • Mas deixa eu voltar nessa questão da necropolítica rapidinho, porque esses corpos para os quais esse regime de morte se volta tem raça, gênero e classe específicos. Isso é importante de ser dito. Então corpos negros e/ou indígenas, femininos e/ou feminizados e pobres tem maiores chances de serem alvos de violências. Um filósofo camaronês chamado Achille Mbembe observou esse fenômeno e cunhou esse termo. Nessa política, o Estado opera uma gestão de uma forma a decidir quem vive e quem morre, por exemplo, ao oferecer mais assistência e segurança em bairros nobres e entrar com tanques e helicópteros em favelas em nome da “guerra às drogas”.

 

  • Que nós sabemos que é guerra a preto, né…

 

  • Pois é… E é por isso que a terceira parte da trilogia tem tamanha força simbólica, porque é sobre pessoas negras que envelheceram. Contra todos os esforços que esse país racista e escravocrata empenha contra as vidas negras, o que vemos em cena é a utopia de um bem viver. O enredo consiste no reencontro de quatro irmãos, agora idosos, que foram despejados da sua casa de infância em 1964, no início da ditadura militar, e assistiram ao desespero da sua mãe perdendo tudo o que construiu, todos os móveis e todas as memórias afetivas daquele lugar. Quarenta anos depois, Mercedes (Marina Esteves) – a única filha entre os irmãos Carlos (Ailton Barros), Everaldo (Filipe Celestino) e Renato (Jhonny Salaberg) – recebe uma carta ordenando que o terreno fosse devolvido a eles. Ela, então, organiza esse encontro no terreno, onde nada foi construído no lugar dos escombros da velha casa. Ficaram ali, esperando pelo retorno da família, os resquícios dessa construção e uma gameleira no centro do quintal. É na recuperação desse terreno, e tudo que ali pode ser construído no lugar dos escombros de uma casa, dos escombros de um projeto de país, que reside a dimensão da utopia.

 

  • Isso é muito bonito mesmo, minha neta. Você sabe que eu tava aqui te ouvindo falar e lembrei da história do terreno da minha avó, Dona Elza. Você era muito nova, não deve se lembrar dela…

 

  • Claro que eu lembro! Conto para todo mundo que conheci minha trisavó! Lembro de ir no aniversário de cem anos dela lá naquela casa de repouso…

 

  • Ela mesma! Então, a sua trisavó Elza deixou um terreno para a minha mãe e os meus tios. Foi cada um criando seu puxadinho por ali, até que um dia o McDonalds fez uma oferta para comprar os terrenos daquela região e começou a brigaiada. Alguns queriam vender, alguns faziam questão de manter o terreno de vovó, mas para vender precisava registrar em cartório aqueles puxadinhos tudo… Aí já viu, né? Lembro do meu tio Darcy, com uma pasta enorme cheia de documento, indo de um lado para o outro tentando organizar aquela bagunça. Acabou que no fim das contas não teve McDonalds nenhum, o tráfico começou a alcançar aquelas bandas, depois veio essa tal de necropolítica… e acabou-se Resultado: hoje ninguém se fala mais, brigou a família toda por conta de um terreno que depois ninguém nem quis mais saber.

 

  • Olha ela! Já aplicando o vocabulário “necropolítica”!

 

  • É, minha filha, sua avó aprende rápido!

Mas me diz, e onde entra aquela história da senhora que se parece comigo?

  • Ah! Muito obrigada por lembrar! Bom, os atores e a atriz d’O Bonde estão acompanhados de quatro idosos – que eles chamam de “baluartes” – responsáveis pela trilha sonora ao vivo do espetáculo. São eles: Cacau Batera (no canto e na bateria), Luiz Alfredo Xavier (nos instrumentos de corda), Maria Inês (cantando) e Roberto Mendes Barbosa (nos teclados). Quando entramos no teatro, já somos recebidos pela música Lilás, de Djavan, seguida de Do fundo do nosso quintal, de Jorge Aragão, sendo tocada e cantada ao vivo pelo Enquanto cantam Jorge Aragão, os atores apresentam os baluartes, se apresentam e se despedem, como se a peça já estivesse para acabar.

 

  • Sabe que antigamente isso era muito comum em filmes? Os créditos vinham Acho que era uma forma de garantir que as pessoas estariam prestando atenção nos nomes de quem está por trás da produção.

 

  • Ah, legal! Não tinha pensado nessa relação. Mas na peça eles dão outra razão para isso. Eles explicam que batizaram esse momento de “finício”, porque, de antemão, sabiam como gostariam que a peça acabasse, mas não sabiam como começar, então começaram pelo fim e foram esboçando um início na hora. Claro que até isso já estava na dramaturgia, mas eles lançam mão desse recurso chamado “meta peça”, ou seja, uma peça que reflete sobre o próprio gesto de fazer a peça. Uma espécie de peça auto consciente de si. Nesse momento em busca de um início, as atuações oscilam, os nomes também: ora os atores se chamam pelos próprios nomes, ora se convocam como irmãos dessa família que estamos sendo apresentados. Por exemplo, para abrir os trabalhos, os atores buscam café, mas também rememoram “o café de mamãe”, feito com sementes de quiabo; Eles falam que os objetos presentes sobre as cadeiras são fruto de uma pesquisa que eles mesmos fizeram nas casas dos seus mais velhos, e em um segundo momento, já assumindo seus personagens nessa família, ficcionalizam o papel desses objetos em suas memórias fictícias: o papagaio de cerâmica verde, o relógio de papai, o talco de mamãe, o rádio antigo e o quadro com o rosto de mamãe embranquecido na fotografia… Fiquei me perguntando que objeto eu levaria da sua casa e montaria uma cena.

 

  • Ah, é? E qual seria?

 

  • As miniaturas de cisnes de vidro!

 

  • Ah, mas não ia mesmo! Essas miniaturas eram da tua bisavó! Imagina, se eu ia deixar você levar para peça de teatro os meus bibelôs!

 

  • É… Se você visse o que eles fazem com o papagaio de cerâmica verde, aí mesmo que a senhora não deixaria!

 

  • O que eles fazem com o papagaio?

 

  • Jogam para cima e o outro tem que agarrar antes que caia no chão.

 

  • Misericórdia! Esse povo do teatro… Eles jogam o rádio, o relógio e o quadro também?

 

  • Não, o resto eles só falam sobre. Eu tenho uma ressalva com essa dinâmica – e nada tem a ver com o papagaio. Mas a questão é que tudo que eles fazem, eles fazem quatro vezes; uma vez por personagem. Aí uma vez que somos apresentados a um dispositivo, a gente já começa a se preparar para ver ele aparecendo mais umas três vezes. Por exemplo, para apresentar esses objetos, um dos atores segura uma câmera de vídeo – dessas do seu tempo, com aparência bem antiga –, enquanto esses objetos aparecem em projeções nas cortinas, que nesse momento estão fechadas e escondem os músicos. Isso com o talco, o relógio, o quadro e o papagaio…

 

  • Ué? Projeções? Mas é teatro ou cinema isso daí?

 

  • É tudo junto e misturado, vó! A dramaturgia é de Jhonny Salaberg, um dos atores em cena, mas a direção é de Luiz Fernando Marques, conhecido como Pelo que tenho visto, posso te dizer que já é uma das assinaturas do trabalho desse diretor essa brincadeira com a câmera em cena e as projeções.

 

  • Mas como isso funciona?

 

  • Para além da apresentação dos objetos, os baluartes também têm suas histórias pessoais contadas em entrevistas projetadas nas cortinas que dividem o palco em dois segmentos: o fundo do palco, onde ficam os instrumentos e os músicos – pelo menos pela maior parte do tempo –, e a frente do palco, mais próxima da plateia. Os atores, ao longo da peça, ficam manipulando essas cortinas amareladas de forma a fazer essa abertura ou fechamento do fundo do palco.

 

  • Ué, gente… Mas os idosos não estão atrás das cortinas? Por que ficam projetando as entrevistas ao invés de chamar esse povo lá pra frente e deixar eles falarem?

 

  • Nossa, sim! Eu fiquei me fazendo a mesmíssima pergunta, vó. Longos períodos de projeções de entrevistas com pessoas que estão logo ali, atrás das cortinas. Vivas! Podendo simplesmente compartilhar suas histórias presencialmente, com sua aura, porque são presenças auráticas mesmo!

 

  • Será que não é para dar um descanso para eles?

 

  • Sei não… O Luiz Alfredo Xavier, por exemplo, é um senhor de 85 anos tocando violão, contrabaixo, cantando, sustentando numa boa as duas horas e meia de duração da peça; Cacau também, no auge dos seus 80 anos, fazendo uns solos incríveis de bateria, sabe? Isso tem tanta força, me emocionavam tanto as cenas em que os baluartes saiam de trás das cortinas! Eu me sentia realmente na presença de ancestrais. Acho que a peça tem um pouco disso, também. Pensar como gostaríamos de ser ancestralizados, como vamos ancestralizar nossos mais velhos; que histórias contaremos sobre eles, como faremos eles serem lembrados… Por exemplo, a imagem da mãe deles, embranquecida em um quadro. É importante que essa imagem não substitua a memória de quem ela realmente foi: uma mulher preta. É importante lembrar sua cor, suas histórias, passar adiante seus ensinamentos – como por exemplo, saber fazer café com sementes de quiabo. Vó, eu quero lembrar de você sempre assim: cantando como passarinho, vestindo suas roupinhas amarelas, fazendo suas palavras cruzadas, aprendendo e ensinando palavras novas. Lembro da vez que tu cismou com a palavra “taciturno”, porque aprendeu isso nas revistinhas. “Não aborreça seu avô hoje, não, que ele acordou taciturno”. “Ai, que apartamento taciturno! Bom mesmo era quando eu morava em casa com quintal”. Eu nem sabia que era possível aplicar essa palavra em tantas frases! Vó, você se imaginou envelhecendo?

 

 

  • Você conheceu o descanso?

 

 

  • Vó, você ainda tá aí?

 

 

  • Vó, eu te amo muito! Tô morrendo de saudades! Manda um salve, quando puder! Vou saber atender seu chamado.

 

Foto de família (Deise em pé no centro) – Arquivo pessoal: Annelise Schwarcz

 

 

 

 

 

 

 

Minha avó Deise Dias Schwarcz faleceu em junho de 2021, vítima da gestão necropolítica que vigorou durante a pandemia de covid-19. Se estivesse viva, teria 84 anos.

Tudo que escrevo é em sua memória.

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