Crítica a partir do espetáculo “Matéria Escura”
Por Laís Machado (BA)
Foto: Humberto Araujo.
A cosmologia é uma disciplina que considero fascinante e que tem atraído, cada dia mais, admiradores na população em geral. Desde a pandemia, tento entender esse fenômeno, no qual me incluo, e tenho algumas ideias. Essas especulações de minha parte se encontraram no Festival de Curitiba com o espetáculo Matéria Escura do coletivo de dança Cena 11, dirigido por Alejandro Ahmed. De alguma forma, essas ideias mediaram e tentaram traduzir a minha experiência com o espetáculo.
Um ponto de contato das ciências e teorias cosmológicas com o “público leigo” é, indiscutivelmente, a imagem. As tecnologias de captura de imagens têm acelerado não apenas o seu desenvolvimento, mas também a velocidade com que são incorporadas no cotidiano das pessoas. Nossa sede de realidade junto a nossa necessidade de “ver para crer” têm nos aproximado da imagem, mas também nos manipulado na medida em que nos tornamos reféns dela.
Mas o que isso tem a ver com a cosmologia? Nos últimos quatro anos, vimos pela primeira vez a imagem de um buraco negro. Com o lançamento do James Webb, a internet foi bombardeada com paisagens estonteantes do cosmos. A Estação Espacial Internacional, junto com a NASA, disponibiliza aplicativos onde podemos acompanhar, em tempo real, astronautas em missões fora das naves, o pôr-do-sol visto da órbita da terra etc. Acompanhamos o primeiro lançamento de uma nova missão na lua, depois de 50 anos. A imensidão cósmica se tornou crível. Esses registros nos fizeram ver através de uma distância de pelo menos 4,6 bilhões de anos-luz.
Enquanto isso estávamos trancados em casa, para nos proteger de um vírus, até então pouco conhecido e avassalador. É como se, colocando na balança, a angústia de nos percebermos ínfimos diante da vastidão do cosmos fosse suplantada pelo conforto de reconhecer mundos fora daqui. Uma esperança de continuidade, talvez. Possibilidades de fuga. Mas existe algo que manipula, move, expande, comprime toda essa vastidão. Algo cuja existência podemos apenas supor e calcular diante dos efeitos que causa em seu entorno: a matéria escura.
Ela corresponde a 27% do Universo Observável e é “invisível”. Por mais complexa que seja a questão, simplificarei aqui da seguinte maneira: se colocássemos o Universo numa balança, a conta não fecharia. Há algum tipo de matéria contribuindo para o “peso na balança” além da matéria bariônica (a matéria visível, digamos assim) e da energia escura (e sua partículas invertidas): a assim chamada matéria escura. Está aí uma situação cosmológica difícil de ser simplificada em uma imagem. Não que a imagem seja necessariamente uma simplificação, mas esse é um “quadro” difícil de delimitar e estabilizar.
O grupo Cena 11 mergulha nas possibilidades de contato com a ideia de matéria escura. Por vezes tentando materializar a força que afeta os corpos das dançarinas, criando alguma resistência a ela, outras cedendo à aceleração que ela imprime, em meio a telas, letterings, microfones de contato e manipulação ao vivo da imagem.
O espetáculo Matéria Escura estreou na modalidade virtual. Mas, ao passar para o presencial, manteve-se em formato híbrido, promovendo duas experiências diferentes e síncronas do mesmo acontecimento: uma para quem está em casa, assistindo pelo seu computador, e outra para quem está no teatro vendo o palco, e o que acontece nele. E vendo, também, o próprio palco mediado pelas telas imensas nas suas laterais e na projeção ao fundo.
Ao transpor a noção de matéria escura e sua interferência invisível para o corpo das dançarinas, nos confrontamos com um ajuste de escala que é difícil de ser feito sem recorrer a analogias. Pensando essa força que move os sujeitos ali no palco como o desejo, as subjetividades, o medo, a gravidade diante dos movimentos mais virtuosos, as relações estabelecidas entre os corpos, os impulsos eletromagnéticos que animam os autômatos (que aparecem brevemente), o wi-fi e a fibra ótica que transmitem a live etc etc etc. É então que o grupo escolhe oferecer um excesso de estímulos pouco inteligíveis, que, em certo aspecto, não deixam de inundar a sensibilidade do espectador, tentando desestabilizar a formação inevitável dessas analogias.
Mas existem no palco dois elementos muito preponderantes na relação do público com as dançarinas e com o acontecimento como um todo, que me fazem olhar para a matéria bariônica ao invés de para a matéria escura. E gostaria de falar um pouco sobre eles. O primeiro é a relação com a câmera e o segundo é a relação com a água.
Por mais caótico que seja o que acontece no palco, a câmera determina para onde se dirige o nosso olhar, na maior parte das vezes. Não pela operação em si, que é uma dança muito integrada com todas as outras que acontecem no palco, mas pela sua reverberação nas telas laterais e na projeção no fundo do palco. O que torna, de certa maneira, nossa experiência refém dos enquadramentos determinados por ela. Os textos ditos só são inteligíveis quando são destacados como letterings nas telas. Então, por mais desestabilizadora que tenha sido a intenção, é como se o grupo voltasse atrás e estabelecesse com muito rigor o que ver, quando olhar, e o que ouvir. Essa opção por um direcionamento de nossa recepção deixa pouco espaço de sobra que possamos, como público, preencher.
A água, por sua vez é um dos principais instrumentos sonoros no palco. Dispositivos controlados por Arduino criam goteiras que caem em outros dispositivos ampliados por microfones de contato. Esses instrumentos são tocados ao vivo pelas dançarinas, ora interrompendo o fluxo por meio da colocação de um obstáculo físico no meio do circuito, ora compondo com as sonoridades de seus corpos e textos numa partitura relativamente estável. E tudo isso é ampliado, ajustado ao vivo por outra pessoa fora do palco. Mas, sobre esse elemento bastante expansivo, há ainda os signos que podem ser construídos nessa relação e que não foram negados pelo grupo durante o debate ao final da sessão: a água como o símbolo da vida. Da vida como somos capazes de imaginar.
Não à toa, esse é um dos elementos procurados ao investigar planetas e exoplanetas (planetas fora do nosso sistema solar) pensando em possibilidades de migração para nossa espécie. A vida, como a conhecemos, surgiu e necessita da água. A presença tão imponente desse elemento no palco traz a vida sempre para o primeiro plano. Mas, olhando o cosmos, ainda que restrito à matéria visível, estamos diante de um outro radical. Esbarramos num limite da nossa própria imaginação enquanto espécie. E esse limite diante dessa radicalidade é muito importante ao pensarmos numa possível migração que poderia nos salvar da extinção, ainda que esse processo não estivesse sendo acelerado por nossos pactos econômicos e sociais.
Um erro muito comum ao pensar a “migração da espécie humana”, quando se quer desmerecer as investigações astronômicas nesse sentido, ou questionar o investimento financeiro na área, é colocar lado a lado com a colonização moderna que nos formou geopoliticamente. Chamando atenção, geralmente, para a necessidade humana de colonizar e abandonar os destroços como vírus. Essa visão pessimista desconsidera alguns aspectos fundamentais de escala, inclusive. Não é uma missão para um estado, mas para uma espécie. Teríamos que viver nossas revoluções para tornar esse movimento possível. Mas sobretudo nos abrirmos para o outro radical que é o próprio cosmos.
Nisso, o espetáculo nos oferece possibilidades imaginativas ao explorar a relação daqueles corpos com dispositivos tecnológicos, invocando por vezes a imagem do corpo cyborg, nos convidando a imaginar outros humanos. Mas, então, nos deparamos com o vídeo final, que destoa de todo o resto. Não apenas pelo silêncio, e pela paisagem desértica apresentada em planos abertos. Mas pela postura imponente das dançarinas, caminhando em direção ao mar ao lado de um cavalo, levando uma vasilha com água (tingida com o mesmo verde dos letterings). Nesse momento, me perguntei se a aproximação entre a migração das espécies e a colonização moderna não foi feita pelo próprio grupo. E se a dinâmica de fruição do espetáculo, determinada pelo coletivo, não seria uma reverberação dessa mesma postura.
Quando perguntado sobre o vídeo final, no debate após a sessão, o diretor respondeu que ele estava ali para acalmar um pouco as coisas (não exatamente com essas palavras). O que me levou de volta a uma das frases repetidas ao longo de todo espetáculo: “a extinção é uma aparência”. Mas eu acrescentaria: a fuga, a ruptura e a quebra também podem ser meras aparências. Por isso, talvez, encarar a extinção como uma possibilidade mais concreta nos convoque a realizar um movimento mais coletivo e nos encoraje a efetivamente mergulhar de um jeito outro na desconhecida imensidão do cosmos.