De 25 de março a 7 de abril de 2024

2024 32º Edição

Crítica da peça Leci Brandão – Na palma da mão

Por Guilherme Diniz

Exu simboliza um princípio movente de comunicação e interpretação; “ele é jogo, é signo, é estrutura”, como nos ensina Leda Maria Martins; orixá ambivalente, múltiplo, disparador de movimentos e instaurador de sentidos plurais, opera nas dobras dos tempos, justapondo passado, futuro e presente de maneira integrada. Mensageiro dinâmico, ele caminha por entre planos distintos (Aiyê e Orum), perfaz as comunicações entre eles. É Exu quem simbolicamente abriu os caminhos para o musical Leci Brandão – Na palma da mão em uma segunda feira, dia consagrado à sua manifestação. A menção, já de início, a este orixá não é mero enfeite ou efeito da peça, pois o senhor das encruzilhadas é uma presença significativa na construção cênica e dramatúrgica desse espetáculo.

Estamos diante de uma produção que revisita a vida e a obra de Leci Brandão, desde as origens humildes até a consagração profissional, como uma das compositoras e cantoras mais importantes do país. O espetáculo ressalta sobretudo a relação da artista com a sua mãe, Dona Lecy de Assumpção Brandão. Ora, foi ela quem ensinou a pequena Leci a ler, apresentou a ela, desde a tenra idade, o axé dos terreiros e a pujança do morro da Mangueira. O amor, o respeito e a cumplicidade entre mãe e filha são aspectos centrais na composição deste musical. Como esperado, o espetáculo também enfatiza, obviamente, o comprometimento político de uma criadora que, na arte, sempre denunciou os abismos do país, a desigualdade social, o racismo, as violências de gênero e o conservadorismo brasileiro. Ao vocalizar reinvindicações históricas por equidade e propor um outro projeto de sociedade, tanto na música quanto na política institucional, Leci se construiu como uma importante intelectual orgânica das classes e dos grupos subalternizados. A peça, encenada por Luiz Antonio Pilar, ganhador do Prêmio Shell de Melhor Diretor, articula, de modo equilibrado, a vida familiar e a vida pública da personalidade retratada.

É notável, no atual conjunto do teatro brasileiro, a expansão dos musicais biográficos. A partir, especialmente, de Tim Maia, Vale TudoO musical (2011), diversos outros espetáculos passaram a escavar a vida de ícones da música ou da cultura pop do Brasil, como Elis Regina, Cassia Eller, Cazuza, Rita Lee e Chacrinha, consolidando, contudo, um modelo dramatúrgico que, de um modo geral, apresentava pouca inventividade experimental para além do drama ou do melodrama mais tradicionais. O jornalista Nabor Jr. destaca, no âmbito dos musicais biográficos, a presença crescente das trajetórias de personalidades negras, como as de Milton Nascimento, Gilberto Gil, Jackson do Pandeiro e Elza Soares. O produtor teatral Jô Santana, idealizador da chamada Trilogia do Samba (espetáculos que homenagearam, na sequência, Dona Ivone Lara, Cartola e Alcione), é, quiçá, um dos mais expressivos nomes que vem contribuindo para incluir mais narrativas e profissionais negros neste segmento teatral, ampliando e tensionando imaginários acerca da formação cultural deste país. Esta digressão parece-me fundamental para situar, do ponto de vista histórico, o espetáculo Leci Brandão – Na palma da mão em um conjunto maior de produções que vêm ampliando os horizontes estéticos dos teatros negros no Brasil.

Em termos dramatúrgicos, o musical se sustenta entre as dimensões épica e dramática, ou seja, alterna narratividade (longas passagens nas quais fatos do passado são contados, rememorados) e contracenas baseadas no diálogo. O desenvolvimento do enredo segue, em geral, uma temporalidade cronológica, do passado mais remoto até o presente. Esta estrutura mais tradicional é entrecortada pelas canções, pelas intervenções bem humoradas dos instrumentistas e pelas inserções pontuais das mitologias dos orixás. Esta sobreposição entre arte e fé, estética e sacralidade de matriz africana povoa todo o espetáculo. Mas aqui não é mera tipificação ou ilustração forçada. Na vida e na obra de Leci Brandão, a força do axé, o íntimo diálogo com os orixás e o respeito às tradições são aspectos fundamentais de sua poética musical, de sua visão de mundo. Tanto a cena quanto o texto traduzem na poesia das palavras, nas simbologias presentes na cenografia e nos figurinos, nos cromatismos da iluminação e na musicalidade vibrante a presença dos orixás como vetores energéticos e artísticos.

Para quem já conhece a vida de Leci Brandão, a dramaturgia não redimensiona ou reconfigura a imagem da biografada. Nesse sentido, o enredo dispensa maiores surpresas, fatos insólitos ou passagens ignoradas da vida artista. O musical não gera, no público familiarizado com a cantora e compositora, fortes estranhamentos, isto é, não nos faz reconstruir de uma maneira nova (ou diferente) o perfil da sambista. Por outro lado, para quem ignora o multifacetado universo musical de Leci, o espetáculo é, mais que uma introdução, um passeio abrangente por algumas das principais realizações desta criadora, apresentando faixas importantes do seu repertório (A filha de Dona Lecy, Papai Vadiou, Gente Negra, Preferência, além, é lógico, da antológica Zé do Caroço, seu sucesso maior), os momentos de crise e dificuldade, bem como a firmeza de uma artista sempre engajada politicamente.

O musical sublinha a ousadia e o destemor de Leci, qualidades que a impulsionam a se tornar, entre outras coisas: a primeira compositora na ala de compositores da Estação Primeira de Mangueira; uma artista que enfrentou com a beleza do samba os desmandos da ditadura civil-militar; uma mulher que musicou, já nos anos 1970 e 80, críticas contundentes à homofobia brasileira (Ombro Amigo e As Pessoas e Eles são primorosas). A direção musical de Arifan Junior propõe belas releituras das canções de Leci, enfatizando, nos arranjos e na orquestração, a sofisticação melódica e o tom combativo das letras. Nesse sentido, o conjunto musical do espetáculo situa o samba assim como o pensa Muniz Sodré, isto é, não apenas como expressão musical de um grupo socialmente subalternizado, mas como um instrumento de luta estética e política para a afirmação da vida negra no mundo urbano.

Em linhas gerais, a encenação de Luiz Antonio Pilar se projeta, primeiramente, pelo modo como cria desenhos de cena, deslocamentos e movimentações muito ágeis, mobilizando elenco que ocupa prontamente todo o palco. A sensação dominante é a de um equilíbrio dinâmico, não estável, em que os elementos dispostos se locomovem e se posicionam de modo orgânico. No fundo, há quatro instrumentistas (Thainara Castro, Matheus Camará, Pedro Ivo e Rodrigo Pirikito) que, simetricamente, postos lado a lado, intensificam esta impressão de equilíbrio.

É perceptível o cuidado e o respeito que a encenação demonstra ter com a história de Leci Brandão. Tal deferência não se converte, contudo, em sisudez ou temor. A direção de Pilar aposta na irreverência, na alegria, trazendo as composições de Leci como mais um elemento cênico que salienta a noção de teatro como jogo jogado entre todas as pessoas presentes, materializando algo que, uma vez mais, Muniz Sodré já observara em muitas tradições africanas e afro-brasileiras: a profunda integração e interdependência entre música, dança, representação, textualidade e outras manifestações artísticas. Na concepção deste espetáculo, a seleção e a organização do repertório musical já é, em si, pensado dramaturgicamente; tudo está fundido de maneira indivisível. As interações com o público, o divertido entrosamento entre os atores e as palmas (essa é uma das marcas de Leci) chamam a audiência para uma grande roda de samba.

O reduzido elenco, composto por Tay O’Hanna, Verônica Bonfim e Sérgio Kauffmann, conta (e canta!) a história de Leci. Além das vozes encantadoras, algo sobressai na atuação deles: a recusa em mimetizar, de modo ultrarrealista, ou caricaturar, de modo tipificado, as pessoas e as entidades que atravessam o enredo. Tay assume, no espetáculo, o papel da sambista biografada, dando-nos uma atuação precisa, esculpindo posturas e gestualidades que não pretendem imitar, no sentido estreito, as performances de Leci. A autoralidade da atuação está no modo como Tay criativamente relê, a partir de seu corpo, a figura de Leci Brandão. Verônica Bonfim é Dona Lecy, a mãe da artista. A atriz desenha com doçura uma imagem maternal, dando-nos algumas das contracenas mais tocantes e divertidas do espetáculo, especialmente pelo modo como justapõe delicadeza e amabilidade na sua atuação. Sérgio Kauffmann por sua vez é um curinga, dando vida a distintas personagens (Exu; Antônio Francisco da Silva, o pai de Leci; Zé do Caroço; Cartola etc). Principalmente como Exu, ele costura os fios do enredo, atravessando épocas e lugares distintos, sendo, portanto, o grande mensageiro/narrador desta história. É destacável a versatilidade do ator que, além de bom instrumentista, modula sem grandiloquência seus recursos físicos e vocais para vivificar personas muito diferentes.

Por último, Leci Brandão – na palma da mão possui, de maneira equilibrada, duas notáveis qualidades, tendo em vista sua natureza biográfica: é um espetáculo autônomo, isto é, sustenta-se como obra teatral que não depende do nosso mínimo ou vasto conhecimento acerca da trajetória da artista para ser apreciado como criação artística; em segundo lugar, a peça não almeja ser maior ou mais importante que a biografada, não toma a aguerrida história de Leci como mera escada para o virtuosismo mirabolante da equipe. O maior feito desse trabalho é nos aproximar mais do universo íntimo e musical da artista, celebrando a vida (em vida!) de uma das nossas maiores criadoras brasileiras.

O espetáculo Leci Brandão – na palma da mão foi apresentado no Festival de Curitiba de 2024, nos dias 01 e 02 de abril.

 

FICHA TÉCNICA

Texto e Pesquisa: Leonardo Bruno;

Adaptação Dramatúrgica: Lorena Lima, Luiz Antônio Pilar e Luiza Loroza;

Direção: Luiz Antonio Pilar;

Direção Musical: Arifan Júnior;

Assistente de Direção: Lorena Lima;

Direção de Movimento: Luiza Loroza;

Figurino: Rute Alves; Cenografia: Lorena Lima;

Iluminação: Daniela Sanchez;

Direção de Produção: Bruno Mariozz;

Atriz/Cantora: Verônica Bonfim;

Ator/Cantor: Sérgio Kauffmann;

Ator/Cantor: Tay O’Hanna;

Violão, Clarinete e Agogô: Matheus Camará;

Cuíca, Tantan, Surdo, Caixa, Tamborim, Congas e Efeitos: Pedro Ivo;

Violão, Cavaquinho e Xequerê: Rodrigo Pirikito;

Pandeiro, Atabaque, Congas, Repique de Anel, Repinique e Efeitos: Thainara Castro;

Preparador Vocal: Pedro Lima; Assistente de Direção Musical: Rômulo dos Anjos;

Assistente Figurino: Diogo Jesus;

Assistente Cenografia: Tarso Tabu;

Cenotécnico: Vicente Mota;

Identidade Visual: Patricia Clarkson e Rafael Prevot;

Comunicação: Natasha Arsenio;

Produção Executiva: Angélica Lessa;

Produção: Palavra Z Produções Culturais (@palavra_z);

Idealização e Realização: Lapilar Produções Artísticas.