Por Pollyanna Diniz
Até Ana Lívia, peça da Cia. BR116 com texto de Caetano W. Galindo, que estreou no ano passado em São Paulo e agora participou do Festival de Curitiba, Bete Coelho e Georgette Fadel nunca haviam trabalhado juntas. Vê-las em cena, interagindo afiadíssimas, como se só elas duas – e cenário, música, iluminação – fossem uma orquestra inteira com arranjos estranhos e belos, é um dos primeiros impactos do espetáculo.
Quando a peça vai acontecendo, quem se permite embarcar na encenação pode ter o corpo impactado pela vibração e experimentação das linguagens literária e teatral e descobre, por fim, que é o próprio teatro, desnudo, que se dá a ver ali, de modo febril e pulsante, desejoso de interação, solicitando que estejamos juntos a cada nova partitura dessa música.
Nessa encenação, na qual respiramos no mesmo ritmo das atuações, pode-se considerar irônico que a incomunicabilidade seja uma das questões latentes no diálogo entre as atrizes. Como em muitas relações que se desdobram no tempo, essas duas estão naquele espaço não se sabe desde quando, talvez desde crianças, talvez sejam duas personagens, ou uma só. Mas o que se estabelece entre elas vai além da apreensão formal de sentidos e, apesar disso, a escuta e, consequentemente, o diálogo, não se torna efetivamente viável. Uma delas quer muito contar algo à outra, ler o texto que acabou de receber, a outra sente que não tem oportunidade de falar, que mesmo quando fala não é ouvida.
Ainda assim, é como se respondendo não necessariamente, ou pelo menos não unicamente, ao que uma diz à outra, os corpos reagissem aos estímulos numa sincronia cronometrada. As duas se sucedem, até se interrompem, falam a mesma frase ao mesmo tempo numa intimidade desconcertante, disputam como se estivessem numa batalha, mas não se borram.
Ao mesmo tempo em que cada uma possui características bastante específicas na encenação, ao ponto de um dos melhores momentos do espetáculo ser justamente a cena em que uma imita a outra, elas também estão imbricadas como se pudessem ser uma só. Há um espelhamento potencializado pela experimentação da linguagem cênica e da linguagem literária, além do apuro técnico, do domínio de cada palavra, de cada suspiro e silêncio, de cada gesto colocado no momento exato pelas atrizes.
Se cenário, iluminação, figurino e muitas vezes até o texto sugerem uma sisudez, há cenas de humor escancarado, nas quais os ensaios das atrizes se estabelecem como espetáculo pronto à interação com a plateia, aos aplausos do público. As mudanças de registro, saindo muitas vezes radicalmente, sem escalas, do gesto contido ao exagero, ajudam na composição do humor nessa tragicomédia. É um corpo disposto ao risco do jogo e do caricatural em suas possibilidades de expressão, um risco teatral sabidamente calculado em suas filigranas.
Nesse sentido, a cenografia de Daniela Thomas, parceira de trabalho de Bete Coelho há mais de três décadas, deixa a caixa do teatro exposta ao público, nessa reiteração de que o que estamos acompanhando é teatro, uma configuração completamente diversa das últimas montagens da companhia, que tiveram cenografias assinadas por Thomas e Felipe Tassara. Em Mãe Coragem (2019), um espetáculo grandioso, o ginásio do Sesc Pompeia foi transformado para receber a encenação que era também uma instalação cenográfica, um campo de batalha, uma arena, planos distintos, público dividido em vários locais no espaço. Em Molly Bloom (2022), o cenário era uma cama, disposta num plano mais alto, mas que incorporava possibilidades de difusão das imagens dos atores: o reflexo no espelho, as projeções ao vivo em várias telas.
Em Ana Lívia, o principal elemento cenográfico é uma longa mesa formada por praticáveis de teatro e três cadeiras e, nesse reforço do local em que estamos todos juntos, as atrizes no palco, nós na plateia, vemos os refletores da iluminação de Beto Bruel expostos, além de todo o ambiente do palco, as laterais, o fundo.
Quais as nossas expectativas quando vamos ao teatro? A todo tempo, Ana Lívia faz questão de lembrar que o que estamos acompanhando ali é teatro, apontando para um caminho que reconhece e explora a própria natureza da linguagem.
O espetáculo é estruturado a partir de uma teatralidade acentuada pela reiteração da linguagem teatral. Mesmo que não que precisasse, a teatralidade está posta, mas o que essa operação propicia aos espectadores?
Ao insistir na exposição da teatralidade, o espetáculo fricciona as expectativas convencionais em relação ao que um espetáculo de teatro pode ser. Esse constante lembrete da artificialidade da representação talvez funcione como um mecanismo de distanciamento, convidando os espectadores a uma postura mais analítica e menos absorvida emocionalmente pelo drama.
Caetano W. Galindo, professor curitibano, tradutor especialista em James Joyce, em sua primeira incursão como dramaturgo (mas em seu segundo trabalho com Bete Coelho, já que assinou a tradução e a consultoria dramatúrgica de Molly Bloom), oferece ao público a possibilidade de enveredar por múltiplas interpretações, além de propor um exercício formal de linguagem. A estrutura não linear supera a tradição do teatro dramático, questionando a expectativa de uma narrativa coesa e fechada. Essa estrutura aberta estimula os espectadores a participarem ativamente na construção desses significados, o que pode tanto desafiar quanto expandir o horizonte.
É um texto que envereda por polos duais: ao tratar de teatro e de ficção, faz pulsar a realidade; ao falar de morte, questiona o que fazemos e como encaramos a vida. Qual a versão real da história do quase afogamento de um cachorro? Existe verdade? A imagem da água está sempre presente, seja pelo barulho de mar que se faz ouvir insistente na mente das atrizes, seja o cenário de um lago ou o rio.
O texto e aquelas atrizes nos fazem questionar como lidar com a inquietude, o desassossego, a iminência de que tudo pode mudar a qualquer momento. O que podemos controlar? No texto de Caetano W. Galindo, quase nada. E essa é uma característica que o potencializa, porque é como se escapasse das nossas mãos, mas permanecesse ecoando no ouvido e no corpo inteiro pelo modo como foram concatenadas as palavras.
A construção do texto privilegia a sonoridade, o encontro entre as palavras, a habilidade na construção do diálogo que não necessariamente tem como intenção possibilitar a comunicação. A experimentação do que um som promove no corpo das atrizes e na plateia. Há, por exemplo, um jogo de troca de palavras com sonoridades parecidas, mas sentidos completamente diferentes, que enriquece e deixa os diálogos ainda mais interessantes e curiosos.
Na primeira sessão do espetáculo no Festival de Curitiba, no último dia 26, o Teatro da Reitoria estava lotado e, dependendo do lugar em que você estivesse sentado, o áudio das atrizes parecia baixo, de modo que não foi fácil acompanhar o que elas diziam em todos os momentos da peça. Mas o texto, mesmo que não ouvido em sua integralidade, proporciona saltos às cenas quando reverbera no corpo das atrizes numa expansão deliberada da oralidade ao corpo.
As atrizes estão sempre se referindo ao autor do texto que elas estão ensaiando, um “ele” indeterminado. A terceira cadeira na mesa permanece desocupada, discreta, quase imperceptível. As palavras desse autor, escritas a pedido delas, estão grafadas no caderno azul ou chegam pelo celular. E talvez nessa operação que, mais uma vez, reforça a teatralidade, a autoria desse texto para aquelas atrizes não está circunscrita apenas ao que elas querem dizer, mas em como elas podem dizer. Voltamos então nesse circuito, que é cíclico e parece não ter fim, um ensaio que é vida representada, que pode se suceder indeterminadamente, à qualidade de presença e ao jogo entre essas atrizes. Atrizes-orquestras-inteiras ocupando o palco.
Ficha técnica:
Texto: Caetano W. Galindo
Direção: Daniela Thomas
Codireção: Bete Coelho e Gabriel Fernandes
Elenco 1: Bete Coelho e Georgette Fadel | Elenco 2: Bete Coelho e Iara Jamra
Cenário: Daniela Thomas e Felipe Tassara
Assistente de direção: Theo Moraes
Direção musical: Felipe Antunes
Assistente de direção musical: Fábio Sá
Figurino: Bete Coelho e Daniela Thomas
Diretor técnico: Rodrigo Gava
Desenho de luz: Beto Bruel
Assistente de luz: Sarah Salgado e Pamola Cidrack
Operadora de luz: Patricia Savoy
Operador de som: Rodrigo Gava
Contrarregra: Theo Moraes
Designer gráfico: Celso Longo + Daniel Trench
Diretor de comunicação: Maurício Magalhães
Assessoria de imprensa: Fernando Sant’Ana
Design de mídia social: Letícia Genesini
Assessoria jurídica: Olivieri e Associados
Dramaturgista da Cia.BR116: Marcos Renaux
Local de ensaio: CASAVACA
Produtora executiva: Mariana Mantovani
Direção de produção: Lindsay Castro Lima