Brasa da palavra

Por Francis Wilker

Crédito: Lina Sumizono.

Desfazenda Me enterrem fora desse lugar é uma criação de O bonde, grupo de teatro negro de São Paulo, criado em 2017 por Ailton Barros, Filipe Celestino, Marina Esteves e Jhonny Salaberg, que formam o elenco da peça. A montagem marca o encontro desses artistas com Roberta Estrela D`Alva, que assina a direção do trabalho. A obra teve uma primeira versão no formato audiovisual em 2021, premiada na categoria espetáculo virtual pela Associação Paulista de Críticos de Arte. Em dezembro de 2022, o trabalho ganha sua versão presencial nos palcos paulistanos e, ao integrar a programação da 31ª edição do Festival de Curitiba, inicia suas circulações.

A pesquisa de linguagem da artista paulista Roberta Estrela D`Alva, diretora de Desfazenda, inscreve nas páginas do nosso teatro contemporâneo um capítulo fundamental sobre o trabalho com a palavra em cena e o enlace entre o teatro e a cultura hip hop. Investimento que ganhou visibilidade com a criação do coletivo paulistano Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, em 1999, ao lado de Claudia Schapira, Eugênio Lima, Lua Gabanini e por onde também já passou, entre outres, a atriz, MC e compositora Dani Nega (responsável pela direção musical de Desfazenda ao lado de Roberta). Além da cena, Roberta oferece ainda outra importante contribuição que é o livro Teatro Hip-Hop (Perspectiva, 2014), em que analisa aquilo que emerge do encontro entre os expedientes do teatro épico e a cultura Hip-Hop, a performance poética do ator MC.

A criação do espetáculo tem como ponto de partida o documentário Menino 23 – infâncias perdidas no Brasil (2016), de Belisário Franca, a partir das investigações do historiador Sydney Aguilar que integram sua tese de doutorado. O fato gerador são alguns tijolos com a suástica nazista que foram encontrados numa fazenda no interior de São Paulo. Ao seguir os rastros desses objetos, encontra-se mais um dos horrores do racismo engendrado na formação do Brasil: 50 crianças negras, entre nove e onze anos de idade, foram retiradas do Educandário Romão de Mattos Duarte, da Irmandade de Misericórdia do Rio de Janeiro, e levadas para uma propriedade privada em Campina do Monte Alegre-SP, onde foram submetidas a longas jornadas de trabalho agrícola e pecuário sob vigilância ostensiva. 

O pesquisador André Lepecki, em artigo que aborda planos de composição na dança contemporânea, nomeia um desses planos de fantasma. O que seria esse fantasma? O autor se inspira nas reflexões sobre matéria fantasma da socióloga norte-americana Avery Gordon para nos convidar a refletir sobre “aqueles fins que ainda não terminaram”. André oferece alguns exemplos, como o fim da escravidão que não terminou com o escravagismo ou o fim da colônia que não terminou com o colonialismo. Esses espectros fazem “o passado reverberar e atuar como contemporâneo do presente”.  É assim que ele nos convida a pensar que, no terreno mais aplainado, mais neutro, podemos tropeçar nos corpos silenciados, negligenciados, apagados. Na primeira cena da peça, aos poucos, frágeis raios de luz nos permitem ver que, do fundo do palco em direção à sua frente, caminham lentamente quatro silhuetas.  A cada passo dado, não sem esforço, a abertura de luz vai nos revelando aquelas pessoas. Vultos ou fantasmas que parecem vir de longe, de muito longe. “Duro silêncio, nosso pai”.

Os cantores Milton Nascimento e Caetano Veloso compuseram juntos, no início dos anos de 1990, a música A terceira margem do rio, alusão mais que direta ao texto de Guimarães Rosa. Me foi impossível pensar em Desfazenda sem que a voz de Milton me soprasse nos ouvidos:

Água da palavra
Proa da palavra
Margem da palavra
Asa da palavra
Casa da palavra
Brasa da palavra

Hora da palavra
Fora da palavra

Duro silêncio, nosso pai

Na canção, algumas imagens são associadas à palavra: água, proa, margem, asa, casa, brasa, hora, fora. Silêncio. A palavra pode ser tanta coisa! É exatamente essa possibilidade de performar a palavra dita nas suas muitas formas – feito água que contorna pedra, que caça jeito – o principal dispositivo na encenação de Roberta para o texto agudo do dramaturgo Lucas Moura, que parte dos fatos históricos e os ficcionaliza ao lado do grupo. Isso acontece pelas vias de um ato de falar que subverte a lógica das vírgulas, dos pontos, dos sentidos, das métricas a que estamos habituados. Como? Por um exigente trabalho de atuação – a partir do repertório de procedimentos da poética de um ator MC. Entre elas, a metrificação da palavra, tomada como sonoridade, música e ritmo, ultrapassando o protagonismo da produção de sentido, de legibilidade, ordenamento racional, causalidade. A pesquisa de linguagem se interessa pela produção de presença, em que a palavra é uma matéria, uma água que pode passear pelos estados líquido, sólido e gasoso a provocar os sentidos, nos hipnotizar, tocar, alterar temperaturas, estados e emoções. Talvez o trabalho com a palavra de Roberta Estrela D`Alva encontre ressonância nos entendimentos da poeta e ensaísta Leda Maria Martins (2021, p. 93):

“A palavra detém o poder de fazer acontecer aquilo que libera em sua vibração. Na palavra são as divindades, os ancestres, os inquices, as rezas que curam, que performam o tempo oracular dos enigmas, o passado e o devir, o som que emite, transmite, esconde, desvela, escurece ou ilumina”.

Em busca dessa vibração da palavra, Estrela D`Alva convida cada performer em cena, apesar das assimetrias técnicas de cada artista, a esculpir a palavra como a água faz com as pedras, o que demanda novas preocupações técnicas para além da boa dicção, empostação e volume. A exploração das possibilidades do spoken word, esse jogo com a palavra declamada, como podemos perceber no rap, no poetry slam (rodas e competições de poesia falada). Moveres com a palavra fortemente associados à cultura preta e periférica norte-americana ao menos desde a década de 1980. Um enlace entre poesia e voz na cidade contemporânea e que, quem sabe, poderíamos ligar à ancestralidade griô, a esse modo de vida em que a oralidade tem papel central na formação das pessoas, nas transmissões de memórias, mitos e ensinamentos, comumente associados aos mais velhos em diferentes culturas de países do continente africano.

Uma ancestralidade que nos convoca a estar diante da palavra como força coletiva e política, na contramão do drama burguês europeu do século XVIII, tão interessado na individualidade de corpos detentores de tantos privilégios. Um traço que podemos notar em novelas, filmes e outras produções em que uma ideologia coletiva, uma policultura, um olhar sistêmico e interdependente entre as vidas humanas e mais que humanas perde espaço. Se essa voz coletiva e que se move por interesses coletivos nos remete à África, nos leva também aos povos originários que formam nosso território há tantos séculos. O professor, escritor e ativista indígena Daniel Munduruku, em sua fala pública no Festival de Curitiba, nos diz: “os velhos contam histórias para educar a alma dos mais novos”. São sinais da força da palavra como vetor de transformação de uma pessoa, de uma aldeia. 

Em cena, Ailton, Filipe, Marina e Jhonny transitam por nuances de um registro eminentemente épico, de modo que, ao narrar, se pode também comentar, descrever, questionar e criticar a ação daqueles personagens. Nenhum dos quatro tem nome próprio, são enumerados: o 12, o 13, o 23 e o 40, assim como foi com as crianças negras levadas para aquela fazenda paulista. A dramaturgia faz uso de um recurso que opera como motor importante para os tensionamentos no micromundo daquelas vidas. São dois personagens que não entram em cena e só sabemos deles por aquilo que os demais relatam. Assim, funcionam como vetores de força invisíveis no espaço imantado do espetáculo. Procedimento que nos lembra também que o espectro de forças que orquestra uma sociedade quase nunca pode ser condensado em um nome próprio, em uma pessoa, embora algumas delas sejam catalisadoras e porta-vozes dessas forças, como testemunhamos nos discursos do presidente da república que governou o Brasil entre 2019 e 2022. Então, é na presença ausente desses dois personagens e o que geram entre os demais que o movimento dramatúrgico se movimenta. Um Padre branco, que “administra” todo aquele empreendimento que explora o trabalho das crianças e ritima seus destinos de máquinas produtivas, silenciosas, subjugadas. No contraponto, temos o personagem Zero, aquele que chegou primeiro e único que já teria visto e lidado diretamente com o padre e suas muitas faces. O desfecho surpreende, ficamos sabendo que o corpo de Zero foi encontrado sem vida, ao lado de uma arma e de um diário.

Mas O Bonde provavelmente não se daria ao trabalho de narrar esses acontecimentos para terminar com mais um corpo negro no chão. Não! Essa equipe de criação parece cultivar em brasas – como aquelas que banharam de fogo a estátua do bandeirante escravagista Borba Gato, em São Paulo, naquele julho de 2021 – o desejo de que, ao narrar, o passado possa se mover, num golpe da palavra, atuando também no presente. Ou, como nos fala o rapper Emicida no seu documentário Amarelo – é tudo pra ontem (2020), por meio de um ditado iorubá que se propagou: “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje”.  É a pedrada da palavra, seja ela escrita ou performada que reposiciona tudo aquilo a que testemunhos ao longo da peça.

Imagina comigo!

O diário de Zero está no chão, algumas velas rompendo a escuridão e diversos microfones em diferentes alturas apontados para ele. A amplificação da palavra no tempo e no espaço. Mas não de qualquer palavra! Não da branca palavra. É a palavra que estava soterrada, o ponto de vista de quem perdeu até o nome próprio, falando em primeira pessoa.  A ação final, realizar juntos um pedido de Zero: me enterrem fora desse lugar. 

O tratamento dado pela encenação para esse último ato é um chamado ao engajamento coletivo que ultrapassa os artistas da peça e o palco. A cena depende de outros corpos, corpas e corpes para se realizar. Essa ação performativa convoca um movimento, afinal, o antirracismo precisa de ação concreta e, sobretudo, do envolvimento de outras pessoas que não somente negros. Uma inscrição no real que precisa sair do teatro, levantar da cadeira, ir para a vida, para a cidade – ao menos ali, no pacto da ação cênica. Seguimos os quatro artistas que levam nas mãos cestos com flores e oferendas, velas e um sino que não para de tilintar. Um sino que, embora não o seja, nos remete ao adjá, instrumento usado pelos mais velhos e iniciados no candomblé para manter a vibração do orixá durante os rituais da prática religiosa. Ali, enquanto vamos saindo de nossos lugares e indo para a rua, o som do sino cria entre nós uma vibração comum à qual pertencemos por aqueles instantes.

O diário é então colocado aos pés de uma árvore, junto das oferendas, e as pessoas, uma a uma, podem pegar um punhado de terra do cesto e ajudar a enterrar/plantar as palavras de Zero num lugar outro. Na apresentação de Curitiba, o rito se deu precisamente na encruzilhada formada pela Rua Visconde do Rio Branco (que, pelas coincidências, sincronicidades ou dramaturgias do inesperado, esteve envolvido na sanção da lei do Ventre Livre em 1871, considerada a primeira lei abolicionista do Brasil) com o Largo Maestro Luiz Eulógio Zilli. Não pude me aprofundar nas implicações histórias desses homens na vida pública, mas não posso deixar de chamar a atenção para o fato de que na cena final da peça, arte e política estão ali encruzilhadas no próprio corpo da cidade. 

Assim termina o rito da palavra que lembra e narra em Desfazenda, com o silêncio de um rito fúnebre. Uma peça que remete à discussão de Jeanne Marie Gagnebin, no ensaio intitulado Como elaborar o passado?, “um trabalho que, certamente, lembra dos mortos, por piedade e fidelidade, mas também por amor e atenção aos vivos”.

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