Pororoca

Por Laís Machado

Crédito: Annelize Tozetto.

Inspirado no livro infanto-juvenil Karaíba, de Daniel Munduruku, nasce o espetáculo homônimo dirigido por Rafael Bacelar e defendido no palco por quatro artistas indígenas: Danilo Kanindé, Jéssica Meyreles, Ludmila D’Angelis e Yumo Apurinã. O trabalho conta a história da reverberação da profecia do sábio Karaíba em três povos: Tupiniquim, Turiaçu e Anhangá. A visão do sábio alertava esses povos sobre uma invasão futura de um monstro estrangeiro que destruiria tudo. Porém, as diferentes interpretações da profecia, feitas pelos líderes, nutrem a possibilidade de uma guerra entre os povos. Cabe ao narrador, que também é o mensageiro, percorrer todo o território desfazendo os “mal entendidos” e unindo os três povos contra o monstro que está para chegar em caravelas portuguesas.

O texto do espetáculo propõe um exercício para reimaginarmos nossa história antes da chegada do colonizador, colocando em primeiro plano os valores de quem já vivia aqui, assim dinamizando a imagem que se tem do território pré-colonial e, dessa forma, reforçando a ideia de “invasão” à medida que enfraquece a ideia de “descobrimento”. Entretanto, na relação entre adaptação do livro, texto dramatúrgico e encenação, alguma coisa parece ter se perdido. 

Um aspecto que parece fundamental na narrativa de Munduruku diz respeito ao possível atrito e, sobretudo, à capacidade de composição entre três povos indígenas no enfrentamento de um inimigo comum: o monstro que opera como alegoria das caravelas e do próprio empreendimento colonial. A diferença de perspectiva entre os Anhangá, Turiaçu e Tupiniquim é força motora na trama. O que move o personagem Perna-Solta (o mensageiro) é justamente sua busca por unir esses diferentes em torno de uma causa comum. Parece faltar nessa proposta de encenação exatamente essa pergunta: que diferentes são esses? Quais possibilidades expressivas/poéticas poderiam ajudar a inscrever em cena as diferenças que Perna-Solta teria como missão superar? A falta dessa reflexão resulta num tratamento homogeneizante, e, sem contraste, perde-se uma oportunidade de tocar na diversidade desses grupos. Numa outra via, acreditar que bastaria a presença desses corpos indígenas em cena (o que não é pouca coisa!) para fazer emergir o lugar da diversidade é subestimar a própria linguagem da cena.

Na peça, traz-se a imagem do rio e dos movimentos conhecidos como afluências e confluências (ambos os termos são usados para descrever tipos diversos de encontros entre rios e seus braços). Nesse ponto, o projeto em si promove essa confluência ao reunir 17 integrantes indígenas entre 27 pessoas que compõem a equipe. E, no contato com o público, a emoção visível no rosto dos adultos que assistiram à peça parece mostrar outra confluência naquele acontecimento que marca sua importância. Mas, para além da questão da infância no que tange a esse espetáculo, para a qual retornarei mais adiante, não pude deixar de me questionar: a quem o espetáculo é endereçado?

Nos momentos iniciais da peça, num jogo de interação com o público, uma das personagens pergunta o sobrenome de algumas pessoas da plateia. Ao receber uma resposta, ela devolve com outra pergunta: “Você sabe a história do seu sobrenome?”. Diante de uma resposta vaga, a perfomer continua desejando que a pessoa tenha a chance de saber um dia. Quando assisti à peça, no contexto do Festival de Curitiba (2023), uma mulher respondeu: “provavelmente se trata do sobrenome da família que escravizou meus ancestrais”. Essa resposta visivelmente desestabilizou a situação. Seria inexperiência da atriz que não saberia o que fazer com uma resposta que não era vaga, como esperado? Ou um engessamento do texto diante de uma relação com o público que não acontece de fato, impedindo a atriz de permitir que a provocação lançada por essa mulher interferisse na cena? Ou, ainda, a transformação daquela mulher, que não era indiferente às discussões étnico-raciais, em uma voyeur de uma conversa que não seria com ela a priori?

 O apaixonamento e vigor materializado nas atuações, o lembrete discursivo da atualidade da questão e o chamamento para o engajamento na luta tornam a obra “necessária”. Do mesmo modo, é inegável a importância de sua participação num festival como o de Curitiba na Mostra Lúcia Camargo (a mostra principal). Entretanto, a tag “necessária” não pode nos retirar da posição de questionar os modos de inserção das “dissidências” nos espaços demarcadores de visibilidade, e como essas presenças atravessam esses espaços. É importante lembrar que inúmeras vezes a celebração da conquista desses lugares pode agenciar ou alimentar mecanismos de apagamento, clássicos, do sistema de exclusão.

Destaco esse ponto tanto pela recorrência quanto pelo poder da legitimação das produções teóricas e proposições estéticas nascidas no eixo Rio-São Paulo, em detrimento de iniciativas de outras regiões, principalmente quando se trata dos grupos marginalizados no país. A celebração dos “primeiros” a marcarem presença em determinados espaços, e sua transformação num capital que agrega valor aos festivais, a outras iniciativas de divulgação e ao próprio coletivo/artista, quase sempre mantém no desconhecimento outras iniciativas e propostas vindas do grupo que se quer incluir. O que pode levar a uma subsequente fetichização pela homogeneização. Propostas criativas e de pesquisa realizadas por pessoas indígenas estão sendo materializadas no norte e no nordeste do Brasil há muitos anos. Para trazer outra referência (apenas uma dentre tantas existentes), cito as iniciativas do coletivo Aldeia (Salvador/Ba) e seus espetáculos/shows Pindorama – Antes de chamar Brasil, Ouricuri (voltados para a infância), além das iniciativas adultas Ybytú-emi, Kanzuá – Nossa Casa (2014), Cabokaji (que se transformou em um ajuntamento), Cabôco experiência; e seu projeto Arete – Tempo de Festa, promovendo trocas de saberes entre Salvador e representações dos povos Funiô, Xucurus-Kariris e Tupinambá a partir de suas experimentações poéticas. 

Há ainda outro ponto sobre o endereçamento que vale a pena pontuar: a infância. O livro Karaíba é um livro infanto-juvenil, bem como a peça. E apesar de o Festival de Curitiba ter uma mostra infantil, a mostra Guritiba, Karaíba foi programada para a mostra principal num horário “adulto”. Esse desalinho entre a linguagem infantil do trabalho e o horário adulto de sua apresentação pode ter afetado de alguma forma a minha percepção do espetáculo (mas não completamente). Por outro lado, ao ver o coletivo afirmar o desejo de expandir sua recepção se colocando como um espetáculo “para todas as idades”, o questionamento anterior parece ser desnecessário. Entretanto, ainda assim se mantém a tensão sobre a qual acredito valer a pena seguir refletindo: o marcador de sucesso de um acontecimento cênico seria ser aceito para a fruição adulta?  

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