Por Rodrigo Nascimento
Em É isto um homem?, Primo Levi fala de suas experiências em Auschwitz e, em determinado trecho das memórias, revela seu assombro diante de uma situação inesperada: muitos dos sobreviventes daquele campo de concentração tinham um sonho bastante parecido. Tendo conseguido escapar miraculosamente do genocídio, chegavam em casa e tentavam contar as experiências do horror a amigos e familiares. No entanto, aos poucos notavam que os ouvintes não lhes davam atenção, conversavam entre si ou simplesmente fingiam que o sobrevivente não estava ali, diante deles.
Não bastasse o desejo de completo apagamento do horror pelos nazistas, que diante da derrota iminente explodiram dezenas de câmaras de gás ou desenterraram centenas de corpos judeus para cremá-los, é como se o fantasma da aniquilação continuasse rondando e perscrutando mesmo as brechas da imaginação e do sonho, a fim de apagar todas as pegadas.
A filósofa Jeanne Marie Gagnebin sugere que o aspecto aterrador desse sonho está também na possibilidade que ele desenha: a de que a indiferença das pessoas impeça o testemunho e de que o relato dos oprimidos fique sem inscrição na História. Lembrar se torna, portanto, uma atitude política diante do horror e se converte, imediatamente, em uma atitude ética em relação ao presente.
É nesta direção que os últimos trabalhos da atriz Nena Inoue parecem se mover: rumo à construção de uma memória não só como revisitação do passado, mas como transformação política do presente. Em Para não morrer, solo que lhe rendeu o Prêmio Shell de melhor atriz em 2019, uma figura feminina ocupava o centro da cena e, por meio da narrativa, tentava manter viva a lembrança de mulheres lutadoras, fossem elas célebres ou anônimas. Em cena, relembrar se transformava em um meio de comemoração, em evocação poderosa de uma presença. O avesso disso – impulso contra o qual colocava todo o gesto cênico – é o esquecimento na forma de apagamento e morte.
Sobrevivente, que tem dramaturgia e direção de Henrique Fontes e estreou neste Festival de Curitiba, é o segundo espetáculo de uma possível trilogia inaugurada por Para não Morrer. Neste teatro documental, Nena esboça a busca de suas próprias origens, após descobrir há poucos meses indícios de sua possível ascendência indígena (para além de sua já sabida herança japonesa). Essa descoberta, no entanto, não estava prevista no projeto inicial, cuja dramaturgia se calcava no trabalho documental com depoimentos de mulheres indígenas guarani.
Em meio à coleta de material e à elaboração da dramaturgia, Nena é interpelada por inúmeras mulheres indígenas que, devido a alguns de seus traços fenotípicos, eventualmente a chamavam de “parente”. Essa imagem de si – inesperada – se converte em indagação sobre sua própria genealogia e leva a uma investigação sobre a linhagem de sua mãe, justamente aquela da qual tinha menos informações. Imediatamente, uma empreitada individual se transforma em uma aventura política coletiva, pois inscrita na engrenagem de apagamentos violentos a que povos originários foram submetidos no Brasil e em toda América Latina.
O palco como espaço de uma busca tateante e recortada. Certidões de nascimento, depoimentos das poucas pessoas que conheceram – e se lembram – de sua mãe e de sua avó, a foto quase opaca da mãe, a ausência de qualquer imagem da avó… A investigação que por vezes assume a forma de uma comovente e divertida aventura detetivesca, é rondada o tempo todo pela ansiedade do encontro com a pista decisiva, com a informação exata, com o dado incontornável. Aí, forma cênica e fundo político de algum modo convergem, pois todo o processo de reconstituição da linhagem de povos negros e indígenas escravizados e dizimados no Brasil não poderia deixar de ser errático e feito mais de pontos cegos do que de descobertas consistentes. Parece residir aí uma das tecnologias mais perversas da máquina colonial capitalista: ao modificar nomes, perseguir religiosidades, desmantelar famílias e tradições, aniquilavam-se também elementos fundamentais de uma identidade coletiva e mesmo dos meios de resistência.
Daí advém um dos impulsos eticamente mais produtivos do espetáculo. Tal qual o historiador sucateiro ao qual se referia Walter Benjamin – aquele que se agarra à incompletude dos relatos, que está atento às vozes que não puderam ser alçadas nem à lembrança –, Nena se volta contra o esquecimento histórico dos povos indígenas representados por sua avó (possivelmente pertencente ao povo paiaguá).
Fetiche da origem?
Resta – como aponta o projeto cênico de Nena e Henrique Fontes – voltar ao passado e assumir a memória como invenção. Como representar o que foi apagado? Como narrá-lo? A mesa de trabalho e o telão em cena se tornam então recursos para a invenção imagética e sonora, criando-se sobre aquilo que o documental não alcança; daí as lembranças do pai e da mãe se tornarem logo um “Teatro da Recordação”, onde se reproduzem trambiques no estrangeiro e aventuras amorosas – cenas que talvez gerem os momentos mais cativantes do espetáculo.
Mas se a intenção de lutar contra o apagamento e o esquecimento rende em cena momentos bastante poéticos – como a lanterna que em meio à penumbra busca angustiante uma imagem perdida no passado –, por outro também coloca o espetáculo em um lugar de incômoda ambivalência. Gagnebin, mais uma vez, nos alerta sobre o paradoxo que reside no gesto de representar o horror, o genocídio e o apagamento: há que se transmitir o que não se pode ser esquecido, mas as versões artisticamente estilizadas flertam o tempo todo com a transformação da memória em fetiche.
Nena deliberadamente afirma que a genealogia indígena, daquelas mulheres quase sem rosto, é a história dela. Nesse processo, acaba por produzir um mito de origem que desenha um passado algo romântico, como se o apagamento precisasse ser reposto com uma estilização praticamente livre de contradições. O duelo de vozes que ofusca o acesso ao passado e as origens em disputa dão lugar – literalmente – a uma representação da avó em cena que parece ser mais uma projeção de seus desejos do presente.
Em determinado momento da peça, brinca-se com um “show da ancestralidade” em que o teste de DNA de Nena revela menos de 2% de ancestralidade indígena. O roteiro imediatamente muda, ironizando a própria expectativa biologizante de que pudesse estar ali a resposta para tudo. E se há nisso um movimento legítimo de se voltar contra os determinismos e retrabalhar os cacos da História, por outro o próprio gesto de insistir no exame – mesmo que fracassado – cria um emblema em cena. Não à toa, após o espetáculo, o primeiro comentário veio justamente de uma espectadora – de fenótipo inquestionavelmente branco-caucasiano – que dava dicas sobre a melhor forma de se checar a veracidade dos testes de DNA. Mesmo que a contrapelo, revelou-se aí a inescapável dimensão fetichizante desse emblema, pois é justamente a branquitude que se beneficiou historicamente de tais testes, genealogias e cidadanias – verdadeiros passaportes simbólicos que patenteariam sua entrada no Velho Mundo.
Estes momentos do espetáculo talvez tivessem ganhado muito mais se, ao invés da estilização que enrijece e idealiza, reconhecessem e sustentassem a dúvida como condição dolorosa e permanente. Isso em nenhum momento atenuaria a disposição política que tem alicerçado o trabalho tão vigoroso de Nena Inoue até hoje. Nossas feridas históricas são muitas e mesmo em meio aos riscos e ambivalências, Sobrevivente ainda se inscreve no movimento fundamental sobre o qual também falou Gagnebin, e que é uma demanda urgente do nosso tempo: “transmitir o inenarrável, manter viva a memória dos sem nome, ser fiel aos mortos que não puderam ser enterrados”.