De 25 de março a 7 de abril de 2024

2024 32º Edição

Crítica à peça Ta | Sobre ser grande

Por Kil Abreu

Ta | Sobre ser grande, com o Corpo de Dança do Amazonas, foi sucesso em Curitiba. Quem assistiu ao espetáculo pode confirmar que o juízo é justo. É uma dança em que a vitalidade dos bailarinos amazonenses se faz admirar pela energia insuspeita, pelo arranjo visual caprichado e pela sofisticação do desenho coreográfico. É mesmo um Corpo que parece dançar com sangue nos olhos e vontade de planar, no mesmo movimento. Nenhuma outra adjetivação seria necessária para justificar a boa escolha da curadoria.

Naturalmente, nossos amigos e amigas curadoras do festival estão atentas aos chamados da sociedade nascidos da disputa de valores que vivemos. Ter artistas de origem indígena, negros e negras, pessoas com deficiência física, pessoas trans, enfim, hoje é uma lição de casa que todos os programadores procuram realizar. Porém, como toda mediação de conflito, esta também deixa marcas e, no limite, dá no contrário do que se pretendia. Ninguém terá dúvida, o que chamamos de representatividade é algo que já foi inteiramente abocanhado pela nossa cultura política cordial. A representatividade institucionalizou-se e está sendo embalada em papel fino. Não é difícil perceber como a discussão em torno das identidades foi enquadrada de uma maneira que o que era na nascente um princípio de radicalidade por representação política vira aos poucos um nicho de mercado.

Por um lado é preciso ficar atento à objetificação das lutas. Por outro, é mais necessário ainda que nos eduquemos para superar o salvacionismo, quase um dogma na esquerda de temporada nascida nas classes médias. E, de todo modo, podemos perguntar: não será esta a aparente natureza das coisas? Nós todos e todas que estamos um pouco mais atendidos por privilégios de classe, etnia, gênero etc não sobrevivemos como mercadorias, e alegremente? Se sim, por que nossos irmãos e irmãs que vêm de violentações de direitos não podem ser inseridos no normal da época? São as nervaturas e contradições do real aqui, nas margens do mundo.

De uma maneira ou de outra estas questões talvez ganhem perspectiva mais produtiva se nos perguntarmos de que forma as demandas de representação, mesmo institucionalizadas, ainda podem ser pontas de lança nos enfrentamentos que nos chamam.

E então podemos voltar ao festival e ao espetáculo. Apontar o alcance de uma provocação é coisa sempre arbitrária. Mas, diante do trabalho vindo do Amazonas, podemos intuir que, embora as questões de fundo (a devastação ambiental e humana na Amazônia) sejam indispensáveis em um dos maiores festivais do país, não é apenas isso o que interessa. Não estamos em um simpósio sociológico e sim em um encontro artístico. E, vista assim, a escolha da curadoria ganha uma qualidade nada protocolar. O debate, idem. A montagem vinda do Amazonas traz interesse ao nosso olhar não apenas porque pauta os perrengues violentos do Norte, causa com a qual nos irmanamos, e sim porque a encenação qualifica o nosso pensamento sobre a região com argumentos estéticos de alto nível.

Canto do Uirapuru e música eletrônica

TA – Como ser grande é dividido em dois movimentos. Ambos sustentadíssimos na forma e no efeito. Mas salvo engano são dois movimentos de energias e conceitos diferentes. Ou, melhor dizendo, energias e ideias que se complementam através de um contraste.

No início do primeiro movimento nós temos a sensação de que veremos mais uma daquelas louváveis tentativas de uma dança regional preocupada em figurar os dilemas da região. Importante, e se fosse apenas isso nós aplaudiríamos igualmente com amor, mas como quem aplaude não os artistas e  sim a causa posta. Porém, mesmo que a narrativa mais colada a uma paisagem física e humana regional seja o centro, já ali é possível perceber que o que se denuncia foge ao clichê da mimetização dos indígenas e se lança em uma aventura de estilização inquieta, que nos oferece não só imagens e estados aproximadamente reconhecíveis como também a disposição para quebrar gestos e tempos, para inventar um vocabulário próprio que fala a língua que imaginamos e, além dela, inventa variações fora da ordem.

O Corpo de Dança do Amazonas foi estudar a sociabilidade dos Tikuna para, a partir desse repertório, pintar o seu quadro de dor e beleza. Os Tikuna são uma entre as muitas etnias da região. Cientes do risco de totalizar neles, os Tikuna, a imagem do indígena “em geral”, o grupo administra uma operação cuidadosa e produtiva. O diretor artístico e coreógrafo Mário Nascimento teve a delicadeza de propor um discurso sobre a situação comum aos povos da floresta sem reduzi-los à tipificação. Isso encontra paralelos. Por exemplo, no ritual Kuarup da Região do alto Xingu. O Kuarup acontece uma vez por ano. É um ritual funerário e festivo comum. A comunidade que o oferece convida as aldeias amigas para celebrar os mortos e seu renascimento simbólico. É uma série de atos em torno de um objeto – um tronco de árvore colhido na floresta – que servirá tanto à cerimônia espiritual como também aos jogos e ritos de passagem que são agregados à celebração.

Podemos pensar no trabalho do pessoal do Amazonas como uma criação que se aproxima desta dança comunitária. Não são, é claro, eventos da mesma ordem. Para os indígenas a dança que articula o ritual não se ergue como “representação” de algo, nem é feita para plateias. Ela é algo em si mesma. Não é uma linguagem artística, no sentido usual. Mas tem as suas convenções, com movimentos que podemos reconhecer no espetáculo. Por exemplo, o compasso binário dos pés batendo no chão e marcando o ritmo, os gestos e sons repetidos coletivamente como um mantra, os deslocamentos e giros com os corpos encurvados.

Nos dois atos o espetáculo conta com a intervenção do DJ Marcos Tubarão, responsável por criar através do som aquelas distinções entre as partes. É um trabalho notável. Não podemos dizer, como se fala no entusiasmo, que é “um espetáculo à parte” porque um dos compromissos do músico é cuidar da sua invenção sem deixar de oferecer a musculatura sonora da narrativa. Não é à parte, é orgânico à cena.

Neste primeiro momento a trilha recria os sons da floresta. Cantos, piares de pássaros e sonoridades pra nós secretas que repercutem em quem performa e em nós mesmos. Uma sinfonia fugidia mas sempre muito expressiva.

O segundo movimento é o dito salto para o contraste e provavelmente o momento que se assemelha ao que no teatro a gente chama de “curva dramática”, passagem em que a situação pode mudar de rumo. E de fato agora o que se vê é que os corpos de caboclos e cablocas manauaras assumem-se mais próximos do que são aqueles jovens que há pouco mimetizavam os seus parentes do mato e das beiras de rio. O espetáculo entra em um segundo registro, com imagens e movimentos mais próximos de estilizações da gestualidade urbana. Podemos imaginar que é Manaus entrando no roteiro, e com ela a população formada por gente que já nasceu sob a sombra da floresta mas também sob a arquitetura de concreto e ferro dos prédios da Zona Franca, um dos maiores pólos da indústria de eletrônicos do país. Agora a trilha eletrônica do DJ Tubarão desfila mais próxima da cultura Hip Hop, do rap, do samba. A coreografia ganha outros cortes, dinâmicas e horizontes em que a variedade dos gestos e a confusão deliberada do trânsito entre os corpos anuncia quem sabe os duplos das cidades grandes da Amazônia, como Belém e Manaus, com seus apelos tecnológicos e mazelas urbanas.

A sublinhar esta ideia, a imagem final nos devolve ao princípio, o ajuntamento dos corpos em um único núcleo, não por acaso um círculo. Os indígenas sabem que a roda, a esfera, são formas caras de representação da sociabilidade que os brancos massacramos e continuamos massacrando. O círculo é onde podemos ver os nossos iguais de frente. É também a unidade na diversidade, algo que foi observado nas teses a respeito do perspectivismo ameríndio: para os indígenas não há divisão entre natureza e cultura. Todo mundo é parente. Não há, ontologicamente, filosoficamente, distinção entre os seres humanos e os bichos, as plantas, os elementos, a terra.

Assistir a um espetáculo que performa artisticamente essas identidades e distinções pode ser pedagógico para quem está interessado de fato na Amazônia. Sobretudo à esquerda de classe média que adora as árvores (em abstrato) e gosta muito de falar em nome das pessoas indígenas. Se o indigena virar mártir – se morrer de malária ou emboscada -, ou seja, se puder comover, tanto melhor.

O Corpo de dança do Amazonas não saiu diretamente das comunidades indígenas. Provavelmente é composto por jovens artistas vindos dos tecidos urbanos da região, mobilizados na arte pelos seus e suas que vivem na floresta.  De qualquer maneira, o que interessa é perceber que não é uma coisa ou outra, o que interessa é saber que as gentes de lá são diversas, como as de todo lugar. O espetáculo como que nos devolve esse direito, o de ver.

Na sintonia mais fina, talvez possamos propor que o espetáculo, com sua dialética, nos surpreende de uma maneira justa. Não porque, uau, vejam, é um ótimo espetáculo vindo da Amazônia – aquele tipo de surpresa solidária que só indica as formas amáveis da xenofobia; mas porque é um ótimo espetáculo que nos arranca das tipificações. E, nessa direção, nos prepara para receber, no Sul e no Sudeste, artistas amazônidas que, com trabalhos sustentados como este, possam circular representando Nelson Rodrigues, Heiner Muller, Shakespeare, ou eles e elas mesmas.

Ta | Sobre ser grande foi apresentado no Festival de Curitiba, Teatro da Reitoria, nos dias 30 e 31/04/2024.

FICHA TÉCNICA

Direção Artística, Concepção e Coreografia: Mário Nascimento; Trilha Sonora Original: DJ Marcos Tubarão; Produtor Artístico e Operador de Luz: Wallace Heldon; Design de Figurino: Ian Queiroz; Design de Luz: João Fernandes Neto; Inspetor: Eduardo Klinsmann; Professor de Balé e Assistente de Coreografia: Paulo Chamone; Assistente de Coreografia: Helen Rojas; Professora de Condicionamento Físico: Liene Neves; Fisioterapeuta: Danilo Mattos; Elenco: Adailton Santos, Adriana Goes, Cléia Santos, Frank Willian, Felipe Cassiano, Gabriela Lima, Helen Rojas, Huana Viana, Ian Queiroz, Júlio Galúcio, Larissa Cavalcante, Liene Neves, Luan Cristian, Marcos Felipe, Pammela Fernandes, Rodrigo Vieira, Rosi Rosa, Sumaia Farias, Talita Torres, Thaís Camillo, Valdo Malaq, Victor Venâncio e Wellington Alves. Companhia: Corpo de Dança do Amazonas (@corpodedancadoamazonas)