Crítica do espetáculo Três Luzes
Por Guilherme Diniz
No mundo das artes visuais, o chiaroscuro é a manipulação metódica das relações entre luz e sombra em uma dada composição. Tal técnica, antiquíssima aliás, modula cuidadosamente os contrastes entre claridade e escuridão a fim de criar variações nos modos como percebemos o espaço, gerando, por exemplo, fascinantes sensações de profundidade. Em termos pictóricos, Caravaggio talvez foi um dos artistas que mais apaixonadamente explorou estes contrapontos. Em várias de suas obras, as luminosidades e as trevas estabelecem diálogos intensos, ora marcam transições graciosas e leves, ora atravessam-se violenta e fortemente, criando, em nós, efeitos emocionais bastante ambíguos. Em um mesmo quadro podemos ir da angústia à tranquilidade, do tormento à plácida contemplação. Nas mãos de muitos criadores e criadoras, o chiaroscuro é não somente um recurso técnico, mas uma maneira de questionar o exercício do olhar, nossas formas de ver e apreender a realidade.
Três Luzes, protagonizado pela atriz Cássia Damasceno, vai nesta mesma direção, ou seja, se estrutura a partir destas oposições entre luz e sombra. O jogo entre visibilidade e ocultamento, breus e clarões delineia tanto a dramaturgia, quanto os desenhos de cena. Aqui os contrastes luminosos são pensados, primeiramente, como metáforas da própria memória. A dinâmica entre lembrar e esquecer, simbolizada por blecautes intermitentes, se projeta como um grande esforço para reconstituir um passado turvo e acidentado. A peça almeja, de alguma maneira, jogar luzes, dar a ver existências socialmente apagadas no terreno da história. Por isso, luminosidade e obscuridade vão ganhando significações sociais à medida que remetem a vidas subalternizadas, a hierarquias e opressões políticas.
O espetáculo ficcionaliza narrativas pessoais e familiares, justapondo as trajetórias da atriz, do seu pai e da mãe de Aristeu Araújo, que, além de ser o diretor da peça, assina o texto ao lado de Damasceno. A dramaturgia é ao mesmo tempo fragmentária e elíptica, isto é, dá-nos não uma história inteiriça, mas picotada em diferentes pedaços que vão sendo retomados pela trepidante memória da atriz-narradora. As pessoas rememoradas são, por assim dizer, crepusculares, de tal sorte que não conseguimos formar uma imagem completa de nenhuma delas. É como se as víssemos um pouco nítidas, um pouco opacas, esboçadas à meia-luz. Acessamos parcialmente suas dores íntimas, as desigualdades sociais que as engolfam e os seus sonhos mais delicados. Tudo isso está entrançado em um texto que sobrepõe e mescla fantasia e reminiscência, passado e presente, real e ficcional.
A dramaturgia, contudo, não articula de modo preciso os seus múltiplos fragmentos, criando um confuso embaralhamento das narrativas paralelas. Ao lado disso, o texto inclui outros dispositivos: passagens em que vemos a atriz presa angustiadamente em um elevador, bem como momentos nos quais ela se dirige diretamente à plateia, discorrendo sobre as muitas (e algumas inacreditáveis) fobias que acometem o ser humano. A adição destes elementos deixa o texto bastante difuso, fazendo com que as fábulas principais (a vida da mãe e do pai), se tornem secundárias, sufocadas entre tantas narrativas e artifícios simultâneos. O imbróglio não está, parece-me, na presença deste ou daquele componente em si, mas na montagem, no modo como cênica e dramaturgicamente as partes estão dispostas.
Isoladamente, porém, certos elementos possuem grande força dramática. As próprias cenas no elevador, por exemplo, vão gradualmente ganhando conotações mais complexas. O mero enclausuramento físico passa a evocar os históricos condicionamentos sociológicos e psíquicos que insistem em aprisionar corpos negros e femininos, como o de Cássia, limitando as suas possibilidades de viver livremente. Ora, muito recentemente o autor baiano Aldri Anunciação publicou sua Trilogia do Confinamento, no qual o aprisionamento geográfico e existencial, promovido pelas artimanhas do racismo, é dramatizado criticamente. Eis um riquíssimo campo de discussão apontado por Três Luzes. Também é boa a música do instrumentista Luiz Lepchak, que, a propósito, acompanha a atriz do início ao fim da peça.
Há um signo que interliga ligeiramente os fragmentos dramáticos: o acesso (ou não) à luz elétrica. A presença deste serviço tão elementar traça uma linha divisória entre classes, raças e regiões, marcando, para mais ou para menos, a qualidade de vida de populações inteiras. O chiaroscuro aqui, volto a dizer, adquire implicações a um só tempo poéticas e sociais. Da difícil vida da mãe, que sonhava em habitar uma residência iluminada, vamos para o apagão no Amapá em novembro de 2020; da desventura do pai que, quando menino, fugiu de casa para não apanhar, saltamos para o mórbido brilho criado pelas bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki em 1945. Menções à ditadura militar na Argentina (1976-1983) e aos conflitos atuais na Faixa de Gaza também aparecem neste gigantesco mosaico. A conjugação de tantas micronarrativas não permitiu que as sagas do pai, da mãe e da própria atriz, (as trajetórias que, afinal, são centrais para o espetáculo) fossem aprofundadas e nem adensadas. Ao cabo, deixamos o teatro com a estranha sensação de que perdemos o fio da meada ou pelo menos boa parte dele.
Estou a enfatizar a análise da dramaturgia não em virtude um textocentrismo démodé. Mas é preciso dizer que a concatenação das distintas narrativas é um dos núcleos do trabalho. O texto dramático aqui é vital.
É altamente relevante a iluminação de Nadja Naira. Os recortes, as intensidades e sobretudo as transições entre um desenho de luz e outro transportam-nos velozmente para variados espaços e tempos. Cada blecaute, como um corte seco, fatia a narrativa, constrói e desconstrói atmosferas. Em um palco despojado de muitos objetos cenográficos, as luminosidades propõem as cartografias, concretas e simbólicas, internas e externas, que são percorridas pela atriz-narradora. É instigante perceber como as instabilidades da vertiginosa memória da personagem de Cássia, são direta e indiretamente traduzidas pelas numerosas angulações, alternâncias e saturações da iluminação. Nadja Naira é uma tarimbada profissional que, há mais de três décadas, nos convida sempre a visualizar a luz como um pensamento, uma camada dramatúrgica, um modo de conceber a cena. Em Três Luzes tudo isso fica patente.
Cássia Damasceno, do mesmo modo, dispensa maiores apresentações. A atriz, integrante da companhia brasileira de teatro (assim como Nadja Naira), já colaborou para distintos grupos cênicos do país, consolidando uma carreira profissional que também abarca passagens premiadas pelo audiovisual. Neste monólogo, a artista nos oferece uma atuação matizada por delicadas nuances. Ela rememora e recria o passado, interpela diretamente o público, ressoa as vozes da mãe e do pai. Cada tarefa solicita modulações sutis na sua interpretação. Em todo o caso, Cássia se coloca sobretudo como uma narradora, uma contadora de histórias que, a despeito da dramaturgia um tanto frágil, quer enfatizar o peso da palavra, sua mágica capacidade de criar vínculos e suscitar imagens.
Salta aos olhos a beleza e a força dos cabelos da atriz. As simétricas tranças são arrematadas pelo majestoso volume dos crespos. Esta escolha, na composição de sua imagem cênica, não é de modo algum incidental ou gratuita, levando em consideração um espetáculo que almeja mergulhar no histórico familiar da artista. Nilma Lino Gomes na importante obra Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra, analisa a dimensão política e cultural do cabelo crespo como um significativo ícone identitário das populações negras, emblemas da presença africana e afro-diaspórica na ancestralidade e na genealogia de quem o tem. Estilo e experimentação visual, resistência aos ditames de uma estética branco-eurocentrada, elemento representativo de movimentos negros artístico-culturais, os cabelos afros, no interior das desiguais relações sociorraciais, são moldáveis e polissêmicos, assim como indicam pertencimentos e (não raro) posicionamentos. Em uma peça que também visa revisitar crítica e criativamente as raízes da atriz, os cabelos falam muito.
Por último, mas não menos importante, Três Luzes é uma das estreias nacionais incluídas na programação do Festival de Curitiba. No ano passado, o texto da peça foi lido na Mostra Fringe, na sequência passou pelo Festival Midrash, no Rio de Janeiro, e desaguou agora na Mostra Lúcia Camargo. Há dois pontos relevantes aqui: primeiramente, a inserção deste espetáculo no Festival estreita a relação com a cidade, dialogando com a produção cênica local, apostando nas suas potencialidades; em segundo lugar, visto tratar-se de uma estreia, a peça poderá ainda caminhar bastante. Nessa estrada, muitas reformulações poderão ser feitas. Ao contrário do que se pensa, uma estreia não é o fim do trabalho, ele está apenas começando.
FICHA TÉCNICA
Dramaturgia: Aristeu Araújo e Cássia Damasceno
Direção: Aristeu Araújo
Atuação: Cássia Damasceno
Música: Luiz Lepchak
Iluminação: Nadja Naira
Figurino: Amábilis de Jesus
Caracterização: Kenia Coqueiro
Consultoria Dramatúrgica: Henrique Fontes
Consultoria de Cenário: Eduardo Giacomini
Direção de Produção: Cássia Damasceno
Assistente de Direção e Produção Executiva: Jade Azevedo.