“A Última Ceia” poderia ser o espetáculo derradeiro do Grupo Mexa, mas virou veículo para a ressurreição – mais ou menos como o personagem bíblico
Por Sandoval Matheus
O diretor (ao centro) e parte do elenco de “A Última Ceia”. Foto: Annelize Tozetto.
A certa altura de “A Última Ceia”, espetáculo do Grupo Mexa em cartaz no Festival de Curitiba, há uma competição entre os atores pra saber quem interpretará Judas Iscariotes, personagem bíblico responsável por trair Jesus e, de certa forma, fundar o cristianismo.
O trecho traz para o palco a discórdia que se viu nos ensaios, quando, surpreendentemente, todo mundo queria para si o papel do delator-mor do Ocidente. A saída, então, foi adotar a atitude de outro protagonista da saga do Messias: lavar as mãos e deixar a decisão para o público.
“A gente achou que ia ter uma briga para ser Jesus, mas todo mundo queria mesmo ser Judas”, relembrou o diretor João Turchi, em entrevista coletiva na manhã desta terça-feira, 01, na Sala de Imprensa Ney Latorraca, no Hotel Mabu. E por que o papel de um dedo-duro é assim tão interessante? “Acho que ninguém queria ser Jesus também para não cair nesse lugar de blasfêmia”, respondeu Dourado, ator da peça. “Na verdade, eu queria ser Judas no início porque achei que ninguém ia querer. Não gosto de disputas”, brincou.
Instigado pelos entrevistadores, o artista acrescentou: “Eu parto de um lugar de não ficar julgando muito Judas. Se ele traiu Jesus, é porque fazia parte de um plano maior, e acreditava mesmo que Cristo era o filho de Deus.”
O espetáculo “A Última Ceia” é inspirado não apenas na história bíblica, mas também no quadro pintado por Leonardo da Vinci, que representa os momentos seguintes a quando o último dos apóstolos teria trocado o nazareno por um saco de moedas.
Heresia ou não – a depender do gosto do freguês –, a primeira sessão na Mostra Lucia Camargo foi um sucesso de público. E depois de passar por Bélgica, Suíça, Alemanha, e pela cidade de São Paulo, a plateia da capital paranaense foi classificada pelo grupo como “uma das mais gostosas”. “Foi uma loucura”, definiu o diretor. “No fim todo mundo estava trocando número de celular. Parecia um grande Tinder”, riu.
Igualmente apetitoso era o que estava sobre a mesa, na refeição compartilhada pela equipe e parte do público durante na segunda parte da apresentação: frango assado com batatas. A escolha é mais um exemplo do bom combate travado nos bastidores. À época dos ensaios, cada membro do elenco escolheu o prato que comeria se estivesse numa espécie de corredor da morte e tivesse direito a uma última refeição. Por um motivo ou outro, venceu o frango com batatas, opção da atriz Suzy Muniz.
“Sempre temos pelo menos frango e vinho na mesa, o resto depende da produção”, explicou. “Hoje em dia eu confesso que estou bem enjoadinha de frango.”
Formado em 2015, dentro de uma casa de acolhida no bairro Bom Retiro, São Paulo, por pessoas em vulnerabilidade social, o Grupo Mexa pensou “A Última Ceia” como seu último espetáculo. Mas o mundo gira e a lusitana roda, como diria o antigo slogan de uma empresa de transportes.
“A peça em si é uma ressurreição. A gente é a nossa própria possibilidade de continuação”, afirmou João Turchi. “O jeito de adiar o fim do mundo é continuar encenando o fim do mundo. É assim que ele não acaba”, filosofou.
A depender de uma senhora curitibana que resolveu “tirar satisfações” com o elenco ao fim da primeira noite, a questão está encerrada. “Tudo isso aqui meio que caminha pra blasfêmia, né?”, teria dito. “Mas é bom.”