Crítica do espetáculo Mutações
Por Guilherme Diniz
Carl Gustav Jung, ao prefaciar a edição alemã do I Ching, reconheceu a dificuldade que era apresentar esta obra, profunda e enigmática, para as sociedades ocidentais, em geral, tão aferradas a um racionalismo dogmático. O psicanalista sustenta que o Livro das Mutações, este milenar clássico do pensamento chinês, não busca interpretar os fenômenos da vida por meio de explicações mecanicistas, baseadas na decodificação de causas e efeitos, nem tampouco pretende apresentar provas e resultados, segundo os cânones metodológicos da moderna ciência euro-estadunidense. Para Jung essa sabedoria abraça, em primeiro lugar, não a causalidade das coisas, mas a casualidade, o acaso e a sincronia entre eventos distintos. Segurança e certezas absolutas não conduzem, neste contexto, a descobertas profundas. Por tais razões, o autoconhecimento e a subjetividade são convocados aqui. Oráculo, livro sagrado, meditações filosóficas, base epistemológica e mítica tanto para o taoísmo, quanto para o confucionismo, o I Ching continua até hoje a ser fonte de fascínio e de estudo.
É este o universo de Mutações. A direção de André Guerreiro Lopes toma o I Ching como o seu grande ponto de partida criativo e reflexivo, desejando explorar, sobretudo, a própria ideia de mutação, isto é, as inconstâncias e as transformações que atravessam nossa existência. O espetáculo extrai do notório livro imagens e símbolos, incorporando-os como elementos cênicos e dramatúrgicos. As três figuras em cena, o Ancião (Luís Melo), o Jovem (Alex Bartelli) e Ela (Andréia Nhur), perfazem alusões aos trigamas e às suas possibilidades combinatórias, além de evocarem a intrincada simbologia dos hexagramas (o céu, a terra, o trovão, o vento, a água…) que compõem o sistema oracular do I Ching. A partir de uma estrutura fragmentada e insondável, entre aquilo que é revelado e aquilo que é ocultado, a encenação deseja, antes de mais nada, suscitar uma reflexão sobre a passagem do tempo, as mudanças e as instabilidades da vida
De um modo geral, a concepção de Mutações se aproxima largamente de alguns dos principais pressupostos do teatro simbolista. Em linhas gerais, nesta estética, oriunda do final do século XIX, nem sempre existem tramas ou enredos no sentido mais tradicional, ou seja, muitas peças se recusam a narrar uma história totalmente definível; o palco simbolista não apenas dispensa personagens realistas e coerentes, do ponto de vista psicológico, mas também não indica, do ponto de vista histórico e geográfico, o lugar da ação, preferindo, ao contrário, estabelecer uma atmosfera mítica, lendária, bastante indeterminada; tal teatro submerge em uma linguagem poética atravessada por ambiguidades, sugestões e metáforas, conduzindo o público a um plano sobrenatural. Para esta cena, qualquer representação naturalista da realidade não apenas atrofiaria o imaginário da plateia, mas se mostraria incapaz de tocar nos pontos mais centrais da existência, isto é, o mundo interno, espiritual, onde supostamente moram as essências. Por isso, a cenografia nesta estética privilegia o despojamento, a leveza, o esvaziamento do palco, valorizando ao mesmo tempo a palavra e o silêncio, o mistério e a contemplação. O crítico inglês, Arthur Symons, ao refletir sobre o simbolismo de Maurice Maeterlinck, assinalou que o autor belga inventou peças semelhantes a quadros nos quais a crueza da vida passa a ganhar contornos nebulosos, enevoados, embebidos de lirismo.
É possível reconhecer todas essas características em Mutações. As três personas em cena não são exatamente sujeitos no sentido moderno do termo; nem tampouco pessoas com traços individualizados, em termos psicologizantes. As suas dimensões são mais arquetípicas, cada qual concentra em si ideias gerais, visões de mundo, padrões mais amplos que se atritam, se atravessam, em uma dinâmica marcada tanto por oposições, quanto por espelhamentos. Reproduzindo um esquema relativamente previsível, o Ancião encarna a temperança, a sabedoria, em contraposição à impulsividade, ao imediatismo ingênuo do Jovem. As movimentações e as posturas hieráticas do elenco conferem ao espetáculo feições algo litúrgicas. Para o teórico teatral Jean-Jacques Roubine certa sacralidade almejada pelos antigos simbolistas não raro desembocava em hermetismo. A dramaturgia de Gabriela Mellão não escapa a isso. A enorme abundância de símbolos e imagens em muitos momentos nos dá uma linguagem muito vaga, cifrada, cerrada em si mesma.
Também a concepção cenográfica desse espetáculo, composta por poucos elementos materiais, em um espaço praticamente vazio, se aproxima dos anseios simbolistas. O manejo das luzes, matizes e sombras, bem como a ventania que se projeta em cena acentuam, por sua vez, as dimensões intangíveis do mundo, tudo aquilo que não habita a pesada materialidade. Historicamente a ribalta simbolista foi ao mesmo tempo o espaço do sonho e do jogo. Mutações se situa nesta ambivalência, exibindo, aliás, a própria artificialidade do fenômeno cênico, isto é, alguns mecanismos construtores de sua teatralidade (as varas de iluminação e os projetores adentram o espetáculo, para dar um exemplo). Nesse palco marcado pela vaziez, os atravessamentos entre poesia e filosofia se avolumam, as sonoridades tomam o primeiro plano, os contornos das palavras ganham ainda mais tônus. É notável o vigor da voz de Luís Melo e a ligeireza da voz de Andréia Nhur. Ele, imprimindo no timbre austero, a sabedoria do Ancião; ela, capaz de emitir suaves desenhos melódicos e vocalizes serpentinos.
Parece-me haver, todavia, uma contradição em Mutações. O projeto do espetáculo visa propor uma reflexão sobre a impermanência do mundo, as inevitáveis transmutações internas e externas pelas quais passamos, as muitas vicissitudes do viver. “A única coisa imutável é a própria mutação”, diz-nos a personagem de Andréia Nhur. Mas pergunto-me se existe, na forma do espetáculo, real abertura para transformações. A milimétrica orquestração da luz e da trilha, bem como as marcações tão rigorosas delineiam um espetáculo bem acabado, mas não exatamente poroso. O uso determinante de inumeráveis blecautes confere ao ritmo da peça uma dinâmica de staccatos, como se as cenas fossem quadros vivos (tableaux vivants). Se por um lado esse formato reforça o impacto visual de cada momento em si, por outro lado não enfatiza a fluidez, nem tampouco as transições, ou seja, a metamorfose cênica não se desdobra às vistas do público. Não estou a ignorar as mudanças incontornáveis que ocorrem de sessão para sessão, pois o teatro é uma arte viva e uma repetição absoluta é impossível. Nesse sentido, contudo, todo espetáculo é, em alguma medida, mutável. Minha indagação é outra: a ideia de mutação é somente representada (quiçá ilustrada) ou de fato encarnada como um princípio poético na estrutura da peça?
Existem dilemas e complicações inescapáveis com os quais todos nós nos deparamos ao ler uma obra antiquíssima e tão entranhada em um sistema histórico-cultural alterno, distinto do nosso em muitos aspectos. O pensador francês Patrice Pavis no livro O teatro no cruzamento das culturas lança-nos questionamentos que podem ser pertinentes para refletirmos sobre a concepção de Mutações. Diz ele: “Podemos nos perguntar, certamente, se uma cultura se deixa tão facilmente representar ou interpretar (perform), se não são apenas os aspectos mais exteriores e superficiais que são os representáveis, deixando na sombra as qualidades mais profundas.” Como é possível teatralizar os labirínticos e complexos conteúdos filosóficos do I Ching? O que se deixa traduzir pelo teatro e o que escapa? Mutações almeja se aproximar intensa e radicalmente do milenar pensamento chinês ou encará-lo de modo estetizante? Em suma, penso que a encenação realiza uma leitura culturalista do Livro das Mutações. O valor cultural da I Ching é considerado, mas ele vem descontextualizado, solto, desprovido dos seus contextos sociais, políticos e históricos. Estas são algumas interrogações e inquietudes que me atravessaram ao lidar com a encenação de André Guerreiro Lopes. Tais questões, entretanto, não nos impedem de vivermos uma bela experiência visual com este trabalho.
O espetáculo Mutações foi apresentado no Festival de Curitiba de 2024, nos dias 05 e 06 de abril, no Teatro Guairinha
FICHA TÉCNICA
Concepção e Direção Artística: André Guerreiro Lopes;
Dramaturgia: Gabriela Mellão;
Elenco: Luís Melo, Andréia Nhur e Alex Bartelli;
Direção Musical e Trilha Original: Federico Puppi;
Cenografia e Figurinos: Simone Mina;
Iluminação: Aline Santini;
Idealização e Produção: Azayah (@azayah.cultura).