Musical que trata da tumultuada relação do ícone da música com o filho mais velho está em cartaz no Festival de Curitiba; elenco deu entrevista coletiva nesta sexta, 28

Por Sandoval Matheus

O elenco e a equipe de “Ray: você não me conhece”. Foto: Annelize Tozetto.

O elenco de “Ray: você não me conhece” havia subido ao palco pela última vez no início de fevereiro, no Teatro B32, em São Paulo, antes de aterrissar no meio da tarde de quinta-feira, 27, em Curitiba para se apresentar dali a algumas poucas horas no Teatro Guaíra – que, com seu gigantismo, pode ser um tanto intimidador.

“Foi impressionante, porque todo mundo estava com o texto intacto na cabeça”, comentou Cesar Mello, uma das estrelas do musical, em entrevista coletiva na manhã seguinte, no Sala de Imprensa Ney Latorraca, no Hotel Mabu. “No fim do ano, quando a gente tirou férias, isso não aconteceu: voltamos e ninguém lembrava bulhufas. Para o ator, a ideia de enfrentar um teatro enorme como esse passa mais pelo delicioso do que pelo medo.”

Em “Ray”, todos os atores e atrizes são negros. Na noite da primeira sessão no Festival de Curitiba, isso não passou despercebido para uma senhora da plateia, que destacou o fato, em tom de celebração e meio aos berros, enquanto Cesar conversava com o auditório, no preâmbulo da peça.

“Na hora, eu gritei de volta: ‘e só tem gente preta nesse palco!’. Me senti muito acolhido. A gente jogou junto”, rememorou ele. A colega de elenco Letícia Soares emendou: “Era uma energia quase tátil. A impressão era de que eu tinha na mão uma coisa que ia poder carregar pra sempre.”

O espetáculo “Ray: você não me conhece” é baseado no livro de mesmo nome de Ray Charles Jr., primogênito de Ray Charles, e fala da tumultuada e errática relação do astro norte-americano da música com o filho.

“Eu queria fazer um projeto sobre paternidade, sobre a relação de pai e filho. Quando encontrei o livro, vi a oportunidade de contar uma história que fala com todo mundo, seja nos Estados Unidos ou no Brasil”, explicou Felipe Heráclito Lima, idealizador do projeto. “Eu sou muito fã de Ray Charles, e a história dele tem uma dramaticidade enorme.”

Nascido numa família pobre da Geórgia, no sul dos Estados Unidos, Ray Charles, o pai, perdeu um irmão, ficou cego e aprendeu a tocar piano ainda na infância. Mesmo assim, se transformou em “o gênio” da música no século 20. Também foi um mulherengo incorrigível – teve 12 filhos com nove mulheres diferentes – e enfrentou o vício severo em heroína.

“Foi muito difícil confrontar o homem por trás do mito”, confessou Letícia. “Era um homem preto, mas um homem preto que cometeu erros tenebrosos. Foi um pai ausente, um péssimo marido e um amante complicado, porque não tinha nenhuma deferência por aquelas mulheres. Ao mesmo tempo, ele saiu da absoluta miséria e se tornou uma estrela. Mas falar isso pode fazer parecer que você está passando pano.”

Para o diretor Rodrigo Portella, o livro de Ray Charles Jr. é em grande medida a homenagem de um filho ao pai admirável, um texto no maior trecho elogioso. “É em apenas uma pequena parte que ele deixa escapar frustrações e angústias, e que pode atribuir ao pai a responsabilidade pelo seu fracasso como artista. Ele tentou repetir uma história que não podia ser repetida. Aos cinco anos, era rico. Na mesma idade, o pai estava perdendo o irmão”, descreve. “No final, a peça é também um pouco sobre como somos capazes de jogar em cima dos outros os nossos buracos, as nossos sombras”, concluiu Cesar.

Redes Sociais