De 25 de março a 7 de abril de 2024

2024 32º Edição
Fundador do Teatro Oficina está em cartaz hoje e amanhã com a peça “O que nos mantém vivos?”, nova versão de um espetáculo que fez durante a ditadura

Por Sandoval Matheus

Integrantes do Teatro Promíscuo, a companhia de Renato Borghi. Foto: Annelize Tozetto.

O monumento está frágil. Aos 87 anos recém-completados e depois de uma cirurgia no coração feita às pressas, em 2022, o ator Renato Borghi enfrenta algumas limitações. Por isso, não estava presente na manhã desta terça-feira, 02, na coletiva de imprensa no Hotel Mabu, para tratar de seu mais novo trabalho, a peça “O que nos mantém vivos?”, com duas sessões a partir de hoje no Teatro da Reitoria.

Renato Borghi, no entanto, é daquelas pessoas que são uma ausência incontornável. Mesmo quando não está em um ambiente, é como estivesse ali o tempo todo. Não se fala em outra coisa. A atriz Débora Duboc, parceira de longa data e agora colega na companhia Teatro Promíscuo, gosta de se referir ao amigo como “Renatinho”. Na conversa com jornalistas e influenciadores digitais, ela falou da angústia do artista veterano durante os ensaios para o espetáculo, ocorridos às vésperas da última eleição presidencial.

“O último governo foi um momento de perseguição ao conhecimento, à Amazônia, à educação, à arte. Foi um momento muito duro pro Renatinho. Ele dizia que se sentia desacatado”, lembra.

É compreensível: Renato Borghi fundou em 1958 o Teatro Oficina, ao lado de Zé Celso, e fez parte de uma geração que enfrentou de peito aberto a ditadura militar. A primeira versão da obra “O que nos mantém vivos?”, aliás, foi encenada em 1973, o período mais sangrento do regime, sob os coturnos do general Garrastazu Médici, e se chamava “O que mantém um homem vivo?”.

“Essa mudança de nome é importante”, explica Débora. “O Renatinho montou esse texto primeiro tentando conversar com aquele momento truculento, violento, com muita gente sendo torturada. Agora, ele chegou à conclusão de que a pergunta precisava mudar, ser coletiva.”

O espetáculo é uma tapeçaria de cerca de três horas de duração, composta por partes da obra de Bertold Brecht, dramaturgo alemão conhecido pelo enfrentamento ao fascismo no século 20, costuradas com trechos da história do Brasil e depoimentos pessoais do elenco, incluindo, claro, as memórias do próprio Borghi.

“Nesse sentido, a peça é trágica, por revelar esse lugar em que estamos no Brasil e no mundo, e que é muito perigoso”, destaca Débora. “É uma obra com várias camadas, muito complexa, muito forte.”

Trágica foi também, de algumas maneiras, a vida próprio de Renato Borghi. Depois de ser sócio de Zé Celso no Teatro Oficina, os dois se desentenderam e passaram uma década sem se falar. Acabaram se reconciliando, mas mesmo assim Borghi continuou sem pisar no palco que ajudara a erguer. Só voltou a se apresentar lá 50 anos depois, em setembro de 2023, poucos meses após o velho amigo ter morrido queimado vivo em um incêndio.

“Pra gente, a volta dele ao Oficina era uma celebração. Mas o Renato não queria ser celebrado, porque estava sofrendo muito”, lembra o diretor Rogério Tarifa. “Ele fala muito pouco, mas teve um momento em que se abriu com a gente, em uma roda. Foi como se estivesse nos abraçando e dizendo ‘obrigado’.”

“Pro Renatinho, não interessa a celebração, se ele não estiver inserido no seu tempo”, completa Débora. “Ele é um questionador, precisa sempre estar falando das coisas do seu tempo.”

“E é um tempo de muita complexidade, não está fácil”, comenta Tarifa. “Ao mesmo tempo, não dá pra perder a esperança. Eu tenho um filho de 17 anos, e esses dias fiquei bravo com um amigo meu. Ele estava falando que o planeta vai acabar, que não acredita mais na humanidade. Quer falar isso, fala pra você, não pro meu filho.”